Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

13 de fevereiro de 2014

Um ato de amor

Ainda me lembro de, na minha juventude, venerarmos os músicos que não vendiam milhões de discos. Melhores ainda eram aqueles recusados pelas grandes chancelas musicais. Considerávamo-los independentes que se recusavam a compor música comercial. Não sei porque é que com os escritores há de ser ao contrário! Na minha opinião, até pode ter mais valor o trabalho de alguém que se dedica a um livro, sabendo que não venderá grande coisa, ou que passará mesmo despercebido, do que o do escritor mediático, com a certeza de que venderá dezenas de milhar de exemplares.

Se uma dona de casa sente uma vontade indomável de pintar, monta um pequeno atelier, frequenta um curso de pintura e mostra as obras espalhadas pelas paredes da casa com orgulho. Elogiam-lhe a veia artística e a habilidade, mesmo sabendo que os seus quadros nunca competirão com os melhores e que ela não consiga arranjar patrocínios para fazer exposições. Se uma dona de casa sente uma vontade indomável de escrever, frequenta um curso de escrita criativa, mete mãos à obra, é recusada por várias editoras, resolve-se pela edição de autor e a apresenta orgulhosa, é dona de um ego descomunal e arma-se em escritora!

Surpreende-me a facilidade com que se desdenha de autores desconhecidos, ou de candidatos a autores que não encontram editora por suposta falta de talento, quando todos sabemos que uma cunha, por mais pequena que seja, pode fazer milagres, no nosso país. Desrespeita-se trabalho e dedicação, sem sequer ter conhecimento de causa. Pergunto-me qual será o motivo de tanta arrogância e desprezo.

Há cerca de mês e meio que não leio nada de novo, até interrompi a leitura de um livro de Alice Munro, que já elegi como uma das escritoras da minha vida. Mal vejo televisão e ligo-me pouco à internet. E tudo isto, porquê? Porque estou a rever o meu novo romance, a ser editado em junho por uma editora que está a dar os seus primeiros passos e mesmo tendo a (quase) certeza de que ganharei com ele menos de 700 euros num ano (isto, depois de ter passado, em 2012, quase meio ano a escrevê-lo). Necessidade de reconhecimento? Vaidade na obra impressa? Esperança de que as vendas corram um pouco melhor? Não o nego! Mas uma coisa vos garanto: trata-se, acima de tudo, de um ato de amor!



O romance é sobre uma jovem, no século XII português, que nos permite um olhar na vida das pessoas comuns daquela época.


8 comentários:

  1. Conheci um homem, na zona de Sintra, que executava peças em madeira, que representavam cenas rurais dos trabalhos tradicionais. Entre varias centenas, podíamos ver o lavrador que segurava a rabiça do arado puxado por um animal, a lavadeira, a tecedeira, a padeira, o pescador, o professor e os alunos sentados nas carteiras, o sapateiro, o boticário, etc. Este homem, já de muita idade e sem qualquer sinal exterior de riqueza, trabalhava numa pequena casa centenária, junto à estrada, onde expunha toda a sua obra. Esta casa tinha sempre a porta aberta e qualquer um podia entrar, observar, apreciar, aprender e conversar. Só não podia comprar, porque o artesão não vendia. Dizia ele, sem tirar os olhos do pedaço de madeira e do canivete com que a talhava, que cada uma daquelas esculturas representava para ele uma pessoa de família e que, a família não se vende. Visitei-o várias vezes. Numa delas, soube que estava prestes a completar a idade de 90 anos, que toda a vida tinha trabalhado no campo e nas horas livres, talhava bonecos na madeira, os quais entregava às crianças a quem os pais não podiam comprar brinquedos. Agora, já nenhuma criança brinca com estas coisas, querem outro género de brinquedos...
    Também este homem entendia a sua arte e o resultado dela, como um ato de amor. Amor por aquilo que já vivera e amor aos bonecos em si mesmo.

    ResponderEliminar
  2. Que linda história, Bartolomeu :)
    São esses os verdadeiros artistas, aqueles que o fazem como um ato de amor. Seja livro, escultura, pintura, etc. O que eu acho é que a nossa sociedade é muito elitista e materialista, desprezando todos aqueles que não têm nomes sonantes ou não dão dinheiro. Quem ama a sua arte, não o faz por dinheiro. Por reconhecimento, talvez sim, o reconhecimento será mais importante. Mas também é relativo. Talvez para esse senhor fosse reconhecimento suficiente dar alegria às crianças que brincaram com os seus bonecos.

    ResponderEliminar
  3. Pois não sei ao certo que vontade move todos os que escrevem, todos os que editam, todos os que compram e... aqueles que leem.
    Nota-se uma postura bastante elitista, em todos. Muitos autores escrevem tentando atingir um público-alvo, através de editoras também elas elitistas. A edição de um livro tem custos elevados, por isso, as editoras só arriscam publicar nomes sonantes, que já tenham prémios ganhos nos currículos, de preferência que já tenham sido traduzidos em vários países, etc.
    Assim, quase nunca a dedicação, a pesquisa, as deslocações, as horas ao computador, são equacionadas, tão pouco o resultado final, mesmo que de elevada qualidade. Mas, basta um pequeno nada, para que tudo se altere e de um livro para o outro, o autor passe dos 700€/ano, para os 700.000... é tudo uma questão de conjunção astral...
    ;)

    ResponderEliminar
  4. muito bem, mesmo! Aguardo pela obra e autografo.

    Tens toda a razão em relação a quem quer aprender mais, que tendo muito ou pouco talento, precisa de ferramentas para expor o que imagina.

    Ainda um dia deste, em troca de ideias com um amigo, disse-lhe que eu não sou como muitos que, segundo eles próprios, tudo o que fazem é por talento natural. Sou levado a acreditar que alguns em bebé prepararam o próprio biberão e liam os Lusíadas ao mesmo tempo.

    mais uma vez, muito bem, Cristina.

    ResponderEliminar
  5. Acabado de escrever e publicar, aqui fica a sugestão de leitura no meu blogue

    http://bloguedomanel.blogs.sapo.pt/o-encontro-na-estacao-de-comboio-o-amor-71099

    Cumprimentos,
    Manuel Joaquim Sousa

    ResponderEliminar
  6. Sim, Bartô, é preciso ter em conta que os riscos são elevados. E tem de haver seleção. Mas noto uma certa falta de humildade em alguns protagonistas deste negócio da escrita. Enfim, é como em todo o lado...
    Gostei dessa da conjução astral ;)

    Pois é, Daniel, se o talento fosse tudo... Há toda uma série de outras condicionantes que ditam o sucesso, ou a falta dele. E muitas pessoas nem têm hipóteses de revelar o seu talento.

    Olá Manuel, desde que resolvi ir também para o FB tenho descurado a leitura dos blogues que sigo. Tomo nota e hei de ir ao seu ;)

    ResponderEliminar
  7. Obrigado pela visita.

    Aos que passam despercebidos chamam-lhes amadores - eu sou amador por aquilo que escrevo nos meus blogues e porque não tiro proveito monetário disso. A este amadorismo chama-se amor ao que se gosta. Aprecio todas as pessoas que encontram no amadorismo o refugio da rotina, o desejo de concretizar um projeto diferente - uma vontade em fazer algo para não ficar na inércia. Esse amadorismo em nada está relacionado com a falta de qualidade, pois nos anónimos há muita qualidade de escrita, de arte, musical. Por vezes, vivemos num mundo formatado para os tops e são mais dignos de valorização esses, independentemente do trabalho e do esforço que tiveram.

    Mas, tal não deve ser motivo para que quem gosta, quem tem jeito, dom ou outra coisa qualquer se sinta inibido de fazer e gozar do seu talento por amor.

    Cumprimentos,
    Manuel Joaquim Sousa

    ResponderEliminar
  8. De acordo, Manuel. O mais importante é fazermos aquilo de que gostamos.

    ResponderEliminar