Estando as
prendas distribuídas, a mesa levantada e a cozinha arrumada, a avó ligou a
televisão. O avô acomodou-se na sua poltrona, com a escalfeta eficientemente
reparada pelo neto Mário a seus pés. As mulheres conversavam, porquanto Tininha
andava ainda às voltas com os sais de frutos, massajando a barriga inchada. Os primos
tornaram a desaparecer. O tio Carlos, embriagado, trauteava lengalengas
obscenas aos ouvidos das sobrinhas, que se riam muito, na sua adolescência, e
Narciso e Januário, sentados à mesa, à volta dos seus copos de vinho,
embrenharam-se numa discussão política, berrando cada vez mais alto, impedindo
os avós de ouvirem a sua televisão. Acabaram por se separar, amuados um com o
outro.
Falou-se na missa
do galo, mas estava frio. Os homens, de qualquer maneira, nunca consideravam ir
e as mulheres sentiam-se cansadas. A avó alegou que se poderia assistir às
cerimónias transmitidas de Roma. Foram, porém, todos deitar-se ainda antes da
meia-noite, encaminhando-se para os seus quartos gelados. As primas tinham mais
sorte, ficavam na sala aquecida, embora tivessem de abrir, por momentos, a
janela, a fim de renovar aquele ar de comidas e transpirações.
A manhã de Natal
reservava uma má surpresa a Clara. Os rapazes haviam-lhe dado nós nas roupas,
alguns tão apertados, que ela só os conseguiu desfazer com a ajuda da mãe. As
primas tinham deixado as suas malas no andar de cima e a indignação da moça só contribuiu
para aumentar o divertimento dos primos. A tia Guiomar foi a única, de entre os
adultos, que se dispôs a admoestá-los. Os homens não quiseram saber. E, se Tininha
mostrou um pouco de compreensão pelo agastamento da sobrinha, Géninha
limitou-se a um circunstancial «ai que malandros». Às escondidas, chegou a rir
com o filho. As roupas de Sandra haviam sido poupadas, confirmando-lhe que uma
moça só era tolerada quando apagada e submissa.
O avô dava-se ao
luxo de saborear o seu café com leite e as suas torradas com manteiga na cama,
pois a mulher levava-lhe o tabuleiro com o pequeno-almoço. Entretanto, já se
havia acendido o lume no forno de lenha da adega, a fim de se assar o cabrito e
o galo capão. Também se havia encomendado um leitão, já pronto, pois, em plena
Bairrada, acedia-se sem dificuldade aos melhores especialistas.
Tendo já
retirado a lenha e metido as carnes no forno quentinho, a avó preparou-se para
ir à missa, solicitando a companhia das netas, já que as filhas e a nora ficariam
a tomar conta dos assados. «Bem me custa», dizia ela, «mas, quanto maior é o
sacrifício, mais Deus gosta e nos recompensa». A Sandra lembrou-se do avô, ainda
no quentinho dos cobertores, e perguntou à avó porque não precisava ele de
fazer aquele sacrifício. A avó olhou-a como se ela tivesse dito algum absurdo e
respondeu: «eu rezo por mim e por ele». Trocando um olhar divertido com a prima,
Sandra contrapôs: «e não podias rezar por nós também»? «Não sejas preguiçosa,
anda», retorquiu a avó, mas era a vez de Clara dizer de sua justiça: «e os
rapazes, também não precisam de fazer sacrifícios»? «Deus me livre, levá-los»,
replicou a avó, «são tão difíceis de aturar». «Não é justo», começou a neta,
mas a avó interrompeu-a: «deixem-se de disparates e apressemo-nos, que se faz
tarde».
A missa foi
demorada, mas, em casa, tudo corria sobre rodas e os genros foram buscar o
leitão, sendo agora a preocupação da avó que o dito cujo estivesse pronto a
tempo. Devido ao grande número de encomendas, costumava haver atrasos.
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