Sandra sentia
uma certa afinidade por aquele primo, que, tal como ela, era aquilo a que chamava
«apêndice da família». A família do tio Januário funcionava ao contrário da
sua. Em casa de Géninha e Narciso, o pedestal pertencia a Filipe. O tio Januário
e a tia Guiomar, contudo, haviam elegido a filha Clara como a rainha do lar. O
primo Toninho, de doze anos, como filho único, era poupado a tais oscilações
familiares.
Sandra e o primo
Mário não passavam portanto de «apêndices»: viam-se obrigados a contentarem-se por
pertencerem à família, sendo-lhes permitido viver sob o mesmo teto e ser sustentados
pelos mesmos pais. Ambos eram calados, com o seu quê de misterioso. Géninha
costumava dizer que a filha era introvertida.
Com miúdas da
sua idade, porém, Sandra não era nada introvertida. E, afinidades com o primo à
parte, não se cansava de conversar com a prima, enquanto os três rapazes iam
extravasar as suas energias para o corredor do primeiro andar, onde se situava
o quarto deles, um dos maiores da casa, albergando três camas de solteiro. As
netas costumavam dormir no sofá-cama da sala, no rés-do-chão, os restantes
quartos eram ocupados pelos quatro casais.
Na cozinha, iniciava-se
a balbúrdia. As rabanadas da tia Guiomar eram famosas, pelo que não foi difícil
decidir que tarefa lhe competia. Cortou o pão adequado em fatias. Umas seriam
passadas em leite, outras em vinho, a fim de contentar todos os gostos. Géninha
e Tininha descascaram as batatas e arranjaram os grelos, que seriam, depois,
cozidos em panelas enormes, assim como o bacalhau e os ovos.
A cautelosa
divisão de tarefas não evitou um conflito. A avó, que criara uma família em
plena ditadura salazarista, tencionava fazer o leite-creme e a aletria com uma
mistura de água e leite. As filhas e a nora protestaram: leite-creme e aletria
faziam-se unicamente com leite! A avó alegou que sempre assim fizera e, já
arrependida de ter condescendido na invasão do seu domínio sagrado, declarou-se
disposta a medir dois terços de leite e um terço de água. E não admitiu mais
conversa.
Os homens
conversavam aos berros, na sala, como se fossem todos surdos. Examinavam as
garrafas de tinto da Bairrada, selecionadas pelo avô, na sua adega ao fundo do
quintal. Os genros puseram a hipótese de serem poucas, pai e filho garantiam
que chegavam. As primas Sandra e Clara tagarelavam ao quentinho da lareira,
entretanto acesa. Os rapazes continuavam entretidos no corredor de cima, imunes
ao frio, que aumentava, à medida que escurecia.
Na cozinha, as enormes
panelas ferviam, cada qual com o seu conteúdo. Devido às grandes quantidades e
aos diferentes tempos de cozedura, os ingredientes haviam sido separados. As
batatas coziam junto com os ovos, enquanto os grelos ocupavam outra panela e o
bacalhau se dividira em duas, pois desenvolvia muita espuma.
As primas foram encarregadas
de pôr a mesa, tarefa que Clara executou sob protesto, por os rapazes serem
poupados. Narciso olhou desagradado para a moça. Sandra estava tão habituada a
ajudar a mãe sem que o irmão mexesse uma palha, que não reclamou, embora
achasse que a prima tinha razão.
A fim de se irem
distraindo, agora que a fome começava a apertar, os homens sentaram-se à mesa, ocupando-se
da preparação dos seus molhos. Picaram alho para os seus pratos, ao qual juntaram
piripiri e um pouco de azeite. Sandra juntou-se-lhes, mas Clara prescindiu,
alegando que não queria ficar a cheirar a alho. O tio Carlos, que era obcecado
por aquele condimento, troçou dela, perguntando-lhe se tinha algum namorado à
espera, naquela noite. Atrevendo-se a dar opiniões, ou a fazer críticas, a
jovem Clara expunha-se amiúde à troça dos tios e dos primos. O avô mantinha-se calado
e inativo, como sempre. Não lhe interessavam as garrulices da neta e alguém lhe
haveria de picar o alho, fosse a mulher, ou o filho.
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