Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

23 de dezembro de 2015

Conto de Natal (5)



Ouviam-se os rapazes no andar de cima, pareciam jogar à bola, algo que a avó não aprovava, devido aos vasos que enfeitavam o corredor. Mas estava tão ocupada com as suas sobremesas aguadas, que não se apercebia. E os pais, entretidos com o alho e o piripiri, não estavam para se maçar.
A mãe da Sandra surgiu, a trazer o pão para a mesa, o delicioso pão da Bairrada, o chamado «pão das sandes de leitão». Vendo a filha a tratar do seu molho, perguntou-lhe se não fazia também para o irmão, que gostava tanto daquilo. Mas Sandra sentia-se protegida naquele ambiente familiar, não era o mesmo que estar sozinha, à mercê da mãe e do pai. Atreveu-se a recusar, alegando que Filipe já era suficientemente crescido para picar um dente de alho. O apoio da prima Clara, que lançou um «pois, era o que faltava», fez com que Géninha prescindisse da sua admoestação habitual à filha: «estás muito refilona, hoje».
A tia Guiomar surgiu com as rabanadas quentinhas, polvilhadas com açúcar e canela, para gáudio do tio Carlos, que adorava as de vinho e logo agarrou numa, enquanto elogiava a cunhada. Lisonjeada, Guiomar riu-se muito. O marido protestou: tivesse sido ele a agarrar numa rabanada, a esposa perderia as estribeiras. Tratando-se de Carlos, ela achava muita piadinha! Guiomar fungou irritada e, depois de pousar as travessas no aparador, ao lado das dos bolharacos, acercou-se da filha e da sobrinha. Em tom confidencial, revelou a caturrice da sogra em fazer o leite-creme e a aletria com água misturada no leite.
A avó queimou o creme com uma espátula, depois de ter distribuído açúcar pela superfície, mergulhando a cozinha em fumo. As primas foram buscar a travessa da aletria, polvilhada com canela, e concordaram, aos segredinhos, que tinha um aspeto muito pálido.
Géninha e Tininha retiraram os ovos do meio das batatas, a fim de os descascarem, e depois de escoadas as panelas, a avó e Guiomar transportaram-nas para ao pé da lareira, a fim de que nada arrefecesse. Os homens adquiriram ânimo, perante a fartura que se adivinhava dentro dos recipientes que se iam juntando à boca do fogão de sala, e berravam ainda mais alto.
Os ovos vieram num alguidar de barro, que se pôs sobre uma das panelas e se tapou com o testo. Chamaram-se os primos. Imperava a regra do self-service, imposta pela avó, a primeira a infringi-la, preparando o prato do marido, antes que qualquer um dos outros se pudesse servir. O avô aguardava no seu lugar, com um pano de cozinha, cuja ponta enfiava no colarinho, a proteger-lhe a camisa. Também Géninha não resistiu ao apelo do filho Filipe, que lhe fizesse o prato e, perante o protesto do rapaz por não ter molho, ainda lhe picou um dente de alho para a comida, olhando de lado para a filha, no seu entender, a única culpada pela sua tarefa extra. Todos os outros se desenvencilharam sozinhos, até Narciso, quando viu a mulher ocupada com o reizinho.
Sandra achava que o irmão perdia parte do espírito da consoada, desdenhando daquela espécie de ritual de formar fila em frente à lareira, reclamando com os da frente, que se despachassem, e advertindo os primos Mário e Toninho, que tentavam surripiar mais do que um ovo. Havia precisamente treze ovos, um para cada pessoa. O prato mais cheio era, como sempre, o da avó, que, à falta de espaço, empilhava os grelos por cima das batatas e do bacalhau, formando uma elevação digna de ser medida com uma régua.
E assim se molhou o pão no azeite e se degustou o bacalhau. O silêncio imposto pelo gozar dos prazeres da comida não tardou a ser interrompido pelo vozeirão do tio Januário: «que foi agora»? A tia Guiomar implicava com a velocidade com que o marido comia, com a quantidade de vinho que bebia e, quanto mais não fosse, com a maneira como esbugalhava os olhos. A avó permitia-se uma pausa na sua degustação: «deixe o rapaz comer». O tio Carlos, por vezes, ria-se trocista, mas só quando se sentia bem comido e bebido. Até lá, não tugia nem mugia.
As conversas iam regressando, à medida que os pratos se esvaziavam, até que tornava a formar-se alvoroço, no compasso de espera entre o prato principal e a sobremesa. Enquanto os homens permaneceram sentados, as mulheres trataram de retirar a louça usada e de pôr os doces na mesa. O leite-creme foi realmente dado por aguado e a aletria sem sabor, apenas o tio Januário e o avô garantiam estar tudo delicioso. Enfim, havia as excelentes rabanadas da tia Guiomar e os eternos bolharacos.


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