Houve uma
tentativa de cantar É Natal, é Natal,
mas não pegou, os homens e os três rapazes não estavam para aí virados. A avó, porém,
recordou que o filho havia cantado o Silent
Night num coro do liceu, um momento que ela nunca esquecera. E, a pedido
dela, não obstante a desaprovação da tia Guiomar e da filha Clara, fez-se ouvir
a voz grave e poderosa, mas impiedosamente desafinada, do tio Januário:
Siiiii-ilent Night
Os primos
trocaram olhares. Clara mostrava-se ligeiramente incomodada, o irmão Mário
parecia encontrar-se literalmente sob tortura. A vontade de rir nos outros
primos, porém, fê-lo descontrair-se um pouco.
Januário, com os
seus olhos esbugalhados, expelia agora um ôôôôôô,
que a Sandra não entendeu. Não fazia parte da canção que ela conhecia. Até que
o tio completou a frase:
Ôôôôôô-ôly Night
Aquela maneira
de ele pronunciar o Holy, sem o
mínimo vestígio de um H expirado, provocou-lhe um ataque de riso muito forte e
ela teve de tapar a boca com o guardanapo. Os rapazes estavam igualmente capazes
de rebentar e também Clara esboçava um sorriso, embora a tia Guiomar continuasse
de nariz torcido. Narciso e Carlos revelavam-se enfadados e Géninha e Tininha quedavam-se
sem qualquer expressão especial que pudesse revelar o que lhes ia na cabeça,
assim como o avô, que se diria estar a dormir, não fossem os olhos abertos. Já
a avó não conseguia evitar o derramar de lágrimas de comoção.
Januário
continuava, no seu inglês impercetível. Apenas quem soubesse o texto de cor fazia
uma ideia do que ele de si emanava.
Depois de trauteada
a primeira estrofe, e indiferente aos risos abafados dos sobrinhos, preparava-se
para continuar, quando Clara lembrou que era altura da distribuição dos
presentes. A tia Guiomar começou a levantar a mesa e as cunhadas imitaram-na.
Retomou-se o alvoroço, enquanto o tio Januário se conformava com a interrupção
e a avó limpava as lágrimas.
A família espalhou-se
pelos sofás e pelas poltronas, à volta do fogão de sala, à exceção de Narciso,
que permaneceu sentado à mesa. Dizia que não ligava «a essa coisa das prendas».
Mas haveria uma razão mais forte. Talvez lhe custasse aguentar o protagonismo
da filha, tão habituado estava a anulá-la. Aquela era a hora das primas, as
«princesas da família», como a própria Clara as definia (Sandra nunca ousaria
tal). Eram elas que distribuíam os presentes, tirando à vez um embrulho do
bordo do fogão de sala. Anunciavam o nome a quem se destinava e procediam à sua
entrega. Também Filipe, à semelhança do pai, parecia não apreciar a cerimónia que
punha a irmã em destaque e constantemente desinquietava os primos para
brincadeiras.
Tininha queixou-se
da barriga inchada, depois da lauta refeição, apesar de todos saberem que ela comera
pouco. Foi tomar bicarbonato dissolvido em água, segundo o avô, o melhor
estimulante digestivo. E, sendo necessário, havia ainda sais de frutos.
Por vezes, batiam-se
palmas e exultava-se, depois da entrega de uma prenda, se bem que a tia Guiomar
reclamasse por o marido falar alto demais. E, ao desempacotar de um dos
presentes, deparando com um livro, o tio Januário mostrou-se desagradado. A avó
quis saber o motivo do desconforto do filho e este lá foi dizendo que sabia
tratar-se de algo que a mulher desejava ler, ou seja, alegou que a tia Guiomar se
presenteava a si própria através dele.
Tanto a esposa,
como a filha, negaram tal intento, mas a cerimónia ficou turvada durante uns momentos.
Tininha aproveitou para ir à cozinha, emborcar uma dose de sais de frutos, pois
o bicarbonato, por si só, parecia não conseguir esmoer os grelos que lhe davam
voltas no estômago. Narciso continuava em segundo plano, como se nada daquilo
lhe dissesse respeito. E os primos haviam desaparecido.
Sandra e Clara encetaram
a distribuição das prendas, agora com mais sossego, desde que se deixara de
ouvir o vozeirão do tio Januário, que insistia no seu amuo. Também a avó se
manteve acabrunhada. E Narciso, lá atrás, recebia os seus presentes a
contragosto, que as moças faziam o favor de lhe ir entregar.
No fim,
distribuíram-se os chocolates e os rapazes surgiram, ficando por saber como souberam
ajuizar o timing. Logo abriram as
suas tabletes, com a avidez de quem tem fome.
O avô enfiou a sua
no bolso e solicitou um quadradinho a cada um dos cinco netos, com o pretexto
de que gostaria de provar as diferentes qualidades. Longe iam, porém, os tempos
em que os moços caíam na esparrela. Desataram em gargalhadas sonoras, o que incomodou
Géninha. Não entendia porque haveriam eles de recusar um quadradinho ao avô! Clara
argumentou que, se lhe apetecia chocolate, que comesse da tablete dele, o que indignou
ainda mais a tia, enquanto a avó ralhava com o marido, que, na sua opinião, se expunha
ao ridículo.
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