Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

24 de dezembro de 2015

Conto de Natal (6)



Houve uma tentativa de cantar É Natal, é Natal, mas não pegou, os homens e os três rapazes não estavam para aí virados. A avó, porém, recordou que o filho havia cantado o Silent Night num coro do liceu, um momento que ela nunca esquecera. E, a pedido dela, não obstante a desaprovação da tia Guiomar e da filha Clara, fez-se ouvir a voz grave e poderosa, mas impiedosamente desafinada, do tio Januário:

                        Siiiii-ilent Night

Os primos trocaram olhares. Clara mostrava-se ligeiramente incomodada, o irmão Mário parecia encontrar-se literalmente sob tortura. A vontade de rir nos outros primos, porém, fê-lo descontrair-se um pouco.
Januário, com os seus olhos esbugalhados, expelia agora um ôôôôôô, que a Sandra não entendeu. Não fazia parte da canção que ela conhecia. Até que o tio completou a frase:

                        Ôôôôôô-ôly Night

Aquela maneira de ele pronunciar o Holy, sem o mínimo vestígio de um H expirado, provocou-lhe um ataque de riso muito forte e ela teve de tapar a boca com o guardanapo. Os rapazes estavam igualmente capazes de rebentar e também Clara esboçava um sorriso, embora a tia Guiomar continuasse de nariz torcido. Narciso e Carlos revelavam-se enfadados e Géninha e Tininha quedavam-se sem qualquer expressão especial que pudesse revelar o que lhes ia na cabeça, assim como o avô, que se diria estar a dormir, não fossem os olhos abertos. Já a avó não conseguia evitar o derramar de lágrimas de comoção.
Januário continuava, no seu inglês impercetível. Apenas quem soubesse o texto de cor fazia uma ideia do que ele de si emanava.
Depois de trauteada a primeira estrofe, e indiferente aos risos abafados dos sobrinhos, preparava-se para continuar, quando Clara lembrou que era altura da distribuição dos presentes. A tia Guiomar começou a levantar a mesa e as cunhadas imitaram-na. Retomou-se o alvoroço, enquanto o tio Januário se conformava com a interrupção e a avó limpava as lágrimas.
A família espalhou-se pelos sofás e pelas poltronas, à volta do fogão de sala, à exceção de Narciso, que permaneceu sentado à mesa. Dizia que não ligava «a essa coisa das prendas». Mas haveria uma razão mais forte. Talvez lhe custasse aguentar o protagonismo da filha, tão habituado estava a anulá-la. Aquela era a hora das primas, as «princesas da família», como a própria Clara as definia (Sandra nunca ousaria tal). Eram elas que distribuíam os presentes, tirando à vez um embrulho do bordo do fogão de sala. Anunciavam o nome a quem se destinava e procediam à sua entrega. Também Filipe, à semelhança do pai, parecia não apreciar a cerimónia que punha a irmã em destaque e constantemente desinquietava os primos para brincadeiras.
Tininha queixou-se da barriga inchada, depois da lauta refeição, apesar de todos saberem que ela comera pouco. Foi tomar bicarbonato dissolvido em água, segundo o avô, o melhor estimulante digestivo. E, sendo necessário, havia ainda sais de frutos.
Por vezes, batiam-se palmas e exultava-se, depois da entrega de uma prenda, se bem que a tia Guiomar reclamasse por o marido falar alto demais. E, ao desempacotar de um dos presentes, deparando com um livro, o tio Januário mostrou-se desagradado. A avó quis saber o motivo do desconforto do filho e este lá foi dizendo que sabia tratar-se de algo que a mulher desejava ler, ou seja, alegou que a tia Guiomar se presenteava a si própria através dele.
Tanto a esposa, como a filha, negaram tal intento, mas a cerimónia ficou turvada durante uns momentos. Tininha aproveitou para ir à cozinha, emborcar uma dose de sais de frutos, pois o bicarbonato, por si só, parecia não conseguir esmoer os grelos que lhe davam voltas no estômago. Narciso continuava em segundo plano, como se nada daquilo lhe dissesse respeito. E os primos haviam desaparecido.
Sandra e Clara encetaram a distribuição das prendas, agora com mais sossego, desde que se deixara de ouvir o vozeirão do tio Januário, que insistia no seu amuo. Também a avó se manteve acabrunhada. E Narciso, lá atrás, recebia os seus presentes a contragosto, que as moças faziam o favor de lhe ir entregar.
No fim, distribuíram-se os chocolates e os rapazes surgiram, ficando por saber como souberam ajuizar o timing. Logo abriram as suas tabletes, com a avidez de quem tem fome.
O avô enfiou a sua no bolso e solicitou um quadradinho a cada um dos cinco netos, com o pretexto de que gostaria de provar as diferentes qualidades. Longe iam, porém, os tempos em que os moços caíam na esparrela. Desataram em gargalhadas sonoras, o que incomodou Géninha. Não entendia porque haveriam eles de recusar um quadradinho ao avô! Clara argumentou que, se lhe apetecia chocolate, que comesse da tablete dele, o que indignou ainda mais a tia, enquanto a avó ralhava com o marido, que, na sua opinião, se expunha ao ridículo.


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