De facto, teve
de se esperar, já com o resto pronto, mas não era ainda tarde, quando os genros
surgiram com o leitão fumegante, de pele estaladiça. Apesar de já temperado,
trazia-se sempre uma malga cheia do molho especial, a tresandar de alho e pimenta.
As tias Tininha e Guiomar procederam ao trinchar do bicho, Géninha alegou que
não tinha jeito nenhum para aquilo e desfaria a carne.
Havia batata
assada e arroz e, na travessa do leitão, rodelas de laranja, que ajudavam a
desenjoar da gordura. A refeição foi ensombrada pelo constatar de que o vinho mal
chegava e a resistência do avô em ir buscar mais. Apesar de ter a adega cheia,
aquilo contrariava-lhe os planos e alegava que o que estava à disposição chegaria,
caso fossem comedidos. Narciso já não se segurava de indignação e levantou-se,
a fim de ir à adega, quando o avô, que nunca interrompia uma refeição, igualmente
se levantou, declarando, com uma energia inabitual, que ele é que sabia qual o
vinho que deveria ser bebido. Encaminhou-se para adega com o pano de cozinha
que lhe servia de babete ao dependuro, e Narciso foi atrás dele, convencido de
que o sogro nunca traria o suficiente. Realmente o avô regressou contrariado,
pois o genro insistiu em trazer três garrafas em vez de uma. «Quem há de beber
isso tudo?», perguntava, exasperando Narciso: «ó homem, deixe-as ficar aqui à
mão, logo se verá se são ou não precisas».
É difícil dizer
se o avô conseguiu gozar o resto da refeição. E o neto Filipe, divertido com
aquela casmurrice, ainda o espicaçou: «ó avô, já abriste o teu chocolate? Bem
podias dar um quadradinho a cada neto». Os primos e a tia Guiomar riram e
também Géninha, normalmente defensora do pai, esboçou um sorriso, pois a
malandrice fora dita pelo seu tesouro. Os homens não ligaram e a avó, apesar de
incomodada, absteve-se de comentar.
No fim, Sandra
sentia-se tão enfartada, que prescindiu das sobremesas. O creme e a aletria não
tinham, de qualquer maneira, grande sabor, nunca ligara a bolharacos e já se enchera de rabanadas no dia anterior. Já o tio
Januário tornou a elogiar a aletria da mãe, emborcando grande quantidade, sob o
olhar enfadado da mulher. Ficou uma garrafa de vinho por abrir e o avô,
normalmente tão calado, lançou a farpa: «eu bem disse que eram garrafas a
mais». Enfim, valeu-lhe que a boa disposição de Narciso andava intimamente
ligada à pança bem atestada.
O dia estava
frio, mas ensolarado, pelo que se resolveu ir dar um passeio, aproveitando para
passar no café. Clara foi, mais uma vez, objeto da chacota dos primos, por
ostentar uns botins de camurça de cano tipo fole no tornozelo e apertado na
zona onde começava a barriga da perna. Também o tio Carlos, bem bebido, se
juntou àquele divertimento dos rapazes.
Apesar de achar
que a combinação dos botins com a minissaia rodada da prima lhe dava um aspeto
de trovador medieval, Sandra achava de muito mau-gosto aquela chacota e
declarou gostar dos botins, que estavam na moda. Minutos depois, já ela havia
esquecido o episódio, a mãe veio segredar-lhe a sua surpresa, temperada por um
laivo de censura: «gostas mesmo das botas»?
Durante o
passeio, Januário e Narciso encetaram as suas discussões políticas, em altos
berros, enquanto o tio Carlos preferia a companhia das sobrinhas, caminhando no
meio delas, que lhe enfiavam o braço e se riam muito das suas lérias.
Depois do
passeio, a festa terminara para Narciso, que se mostrou ansioso por fazer a
viagem de regresso. Instigou a família a fazer as malas, quando todos se preparavam
para descansar nos sofás da sala. O desagrado de Sandra era ainda maior, porquanto
ela gostaria de ficar com a prima, cuja família tornaria a pernoitar nos avós. Januário
não queria perder o almoço do dia seguinte, em que a mãe fazia roupa-velha: os restos das batatas, dos
grelos e do bacalhau desfeito eram estrugidos em azeite e alho. À despedida, e
por entre recomendações ao genro que guiasse com cuidado, a avó desabafou:
«gosto muito do Natal, mas também me agrada, quando, no fim, vocês regressam às
vossas casas».
No dia seguinte,
ao serão, Géninha recebeu um telefonema de sua mãe. Assim que a casa esvaziara,
ela procedera às primeiras arrumações e, no corredor do primeiro andar, dera
conta de um vaso fora de sítio. Quando o quis arrastar, o vaso abriu-se,
despejando a terra para cima da alcatifa! Era óbvio que o despropósito tinha a
assinatura dos netos e ela exigia saber qual deles partira o vaso!
A avó nunca
telefonava a ninguém, fazia mesmo questão de apregoar que dispunha de telefone
só para receber chamadas. Num tempo em que não havia telemóveis nem internet,
os telefonemas «para fora», isto é, para uma localidade diferente, exigindo
indicativo, eram de facto custosas.
Naquele serão,
porém, a avó ligou aos três filhos. Em vão. Nunca se descobriu quem partiu o
vaso, os primos cumpriram o pacto que haviam feito entre eles, encolhendo os
ombros, alegando não saberem de nada.
E assim se
passou mais um Natal. No ano seguinte, a cena repetir-se-ia. E, por mais
chacotas, discussões e ressabiamentos que houvesse, Sandra tornaria a sentir-se
menos sozinha do que na sua própria casa, ficando, para o resto da vida, com a
sensação de que aqueles convívios natalícios tinham sido os melhores da sua
vida.
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