Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

19 de dezembro de 2015

Conto de Natal (1)



A Sandra gostava daqueles natais com avós, tios e primos, já que a sua vida familiar só era suportável porque ela e o irmão passavam muito tempo no liceu e os pais nos seus empregos. Ao fim-de-semana, quando se juntavam para as refeições, as comportas cediam à pressão acumulada. Em tempos mais recuados, os pais guerreavam um com o outro. Agora, que o filho ia entrando na adolescência, as batalhas aconteciam entre ele e o progenitor.
Com quinze anos, a Sandra não perdera ainda o medo do pai Narciso, embora tivesse havido uma metamorfose na origem desse medo, uma transformação lenta e dissimulada, da qual ela nem se apercebera: o pavor dos castigos que ele lhe infligia em criança dera lugar ao medo de o magoar. Pai tirano, Narciso era, ao mesmo tempo, quebradiço como porcelana. Se não hesitava em usar de violência como método educativo, rachava ao menor toque. Transferia a culpa dos seus ressentimentos a quem estivesse à mão, normalmente a filha. Além de ser mulher, era mais frágil do que a esposa. A Sandra tratava-o com pinças e comia caladinha. Já ao irmão Filipe, um ano mais novo, permitiam-se ousadias. Mesmo assim, Narciso perdia as estribeiras, caso o rebento pisasse em ramo verde, nas suas cavaqueiras de fim-de-semana.
A família da Sandra era a primeira a chegar a casa dos avós. Narciso fazia-os andar numa lufa-lufa, antes da partida. Aprontava-se depressa, arranjava até ocasião para ir ao café. Mas esvazia-se uma chávena desse aromático néctar em três tempos e, no seu regresso, Narciso explodia, ao constatar que a mulher e os filhos ainda se debatiam com os preparativos. Com um ar de quem está a ser torturado, insistia em não perceber porque precisavam eles de tanto tempo.
A Sandra imaginava-se a responder-lhe: talvez porque tu não tens de fazer as malas, já que é a mãe, com a minha ajuda, que as faz para toda a família; e talvez também porque exiges ser o primeiro a usar a casa de banho; já agora, devias igualmente considerar que não tomas pequeno-almoço; e que a mãe, além de nos preparar o pequeno-almoço, ainda tem de arrumar a cozinha; e isto só para dar pequenos exemplos, passando por cima de outros pormenores, como as mulheres precisarem de mais tempo para arranjarem o cabelo e se pintarem. E não reclames, que também gostas de as ver arranjadas!
            Enfim, quedavam-se mudos, na sua roda-viva, enquanto Narciso zurzia neles: «à vossa espera, passo a minha vida à vossa espera».
            A sala de jantar dos avós cheirava a bolharacos, empilhados em várias travessas, sobre o aparador. Os bolharacos, uma espécie de sonhos de abóbora e noz, polvilhados com açúcar e canela, eram tradição. A Sandra não lhes ligava, mas o avô adorava-os. Infiltrava-se na cozinha, enquanto a mulher os fritava, a fim de surripiar um ou outro, ainda quente, o que exasperava a esposa, que não gostava de homens naquele seu canto que considerava sagrado.
Nem de homens, nem de mulheres. Punha e dispunha, não admitia ajudas nem palpites. À altura em que foram dadas em casamento, Géninha e Tininha, as suas duas filhas, não sabiam fritar um bife. Mas os anos iam pesando, cozinhar para treze pessoas punha-a nervosa e admitiria, pela primeira vez, a ajuda das filhas e da nora Guiomar.


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