A Sandra gostava
daqueles natais com avós, tios e primos, já que a sua vida familiar só era
suportável porque ela e o irmão passavam muito tempo no liceu e os pais nos
seus empregos. Ao fim-de-semana, quando se juntavam para as refeições, as comportas
cediam à pressão acumulada. Em tempos mais recuados, os pais guerreavam um com
o outro. Agora, que o filho ia entrando na adolescência, as batalhas aconteciam
entre ele e o progenitor.
Com quinze anos,
a Sandra não perdera ainda o medo do pai Narciso, embora tivesse havido uma
metamorfose na origem desse medo, uma transformação lenta e dissimulada, da
qual ela nem se apercebera: o pavor dos castigos que ele lhe infligia em
criança dera lugar ao medo de o magoar. Pai tirano, Narciso era, ao mesmo tempo,
quebradiço como porcelana. Se não hesitava em usar de violência como método
educativo, rachava ao menor toque. Transferia a culpa dos seus ressentimentos a
quem estivesse à mão, normalmente a filha. Além de ser mulher, era mais frágil do
que a esposa. A Sandra tratava-o com pinças e comia caladinha. Já ao irmão
Filipe, um ano mais novo, permitiam-se ousadias. Mesmo assim, Narciso perdia as
estribeiras, caso o rebento pisasse em ramo verde, nas suas cavaqueiras de
fim-de-semana.
A família da
Sandra era a primeira a chegar a casa dos avós. Narciso fazia-os andar numa
lufa-lufa, antes da partida. Aprontava-se depressa, arranjava até ocasião para
ir ao café. Mas esvazia-se uma chávena desse aromático néctar em três tempos e,
no seu regresso, Narciso explodia, ao constatar que a mulher e os filhos ainda
se debatiam com os preparativos. Com um ar de quem está a ser torturado, insistia
em não perceber porque precisavam eles de tanto tempo.
A Sandra imaginava-se
a responder-lhe: talvez porque tu não tens de fazer as malas, já que é a mãe,
com a minha ajuda, que as faz para toda a família; e talvez também porque
exiges ser o primeiro a usar a casa de banho; já agora, devias igualmente considerar
que não tomas pequeno-almoço; e que a mãe, além de nos preparar o
pequeno-almoço, ainda tem de arrumar a cozinha; e isto só para dar pequenos
exemplos, passando por cima de outros pormenores, como as mulheres precisarem
de mais tempo para arranjarem o cabelo e se pintarem. E não reclames, que também
gostas de as ver arranjadas!
Enfim,
quedavam-se mudos, na sua roda-viva, enquanto Narciso zurzia neles: «à vossa
espera, passo a minha vida à vossa espera».
A
sala de jantar dos avós cheirava a bolharacos,
empilhados em várias travessas, sobre o aparador. Os bolharacos, uma espécie de sonhos de abóbora e noz, polvilhados com
açúcar e canela, eram tradição. A Sandra não lhes ligava, mas o avô adorava-os.
Infiltrava-se na cozinha, enquanto a mulher os fritava, a fim de surripiar um
ou outro, ainda quente, o que exasperava a esposa, que não gostava de homens naquele
seu canto que considerava sagrado.
Nem de homens,
nem de mulheres. Punha e dispunha, não admitia ajudas nem palpites. À altura em
que foram dadas em casamento, Géninha e Tininha, as suas duas filhas, não
sabiam fritar um bife. Mas os anos iam pesando, cozinhar para treze pessoas punha-a
nervosa e admitiria, pela primeira vez, a ajuda das filhas e da nora Guiomar.
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