Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

26 de dezembro de 2020

Senha Número Trinta e Quatro

 


Neste livro, vencedor do Prémio Literário Vergílio Ferreira 2020, atribuído pela Câmara Municipal de Gouveia, João J. A. Madeira aborda um tema que ocupa a humanidade desde que ela existe: o que acontece depois da morte?

Alípio passou pela vida sem que se notasse, «um pão sem sal, não fez bem nem mal». Não constituiu família, não fez amigos. No seu velório, encontram-se apenas três pessoas: um representante da funerária, o seu senhorio e uma mulher que não o conhecia, mas que, por solidão, costuma ir aos velórios realizados na capela ao lado de sua casa.

Alípio, no entanto, adquire uma segunda oportunidade: regressa à Terra, não numa segunda vida, mas com a missão de cuidar de alguém prestes a nascer. Vê-se assim no papel de anjo-da-guarda, resolvido a fazer tudo o que estiver no seu poder para ajudar a sua protegida. A sua vontade é tanta, que chega a interferir naquilo que não deve.

Mas chega essa sua grande vontade para fazer uma pessoa feliz? São os anjos todo-poderosos e livres de dúvidas? Ou é o destino mais forte? Quem, ou o quê, comanda realmente a humanidade?

Um enredo imaginativo, à volta de um tema interessantíssimo, onde, não raro, o leitor deseja tornar-se igualmente anjo-da-guarda, a fim de interferir nos acontecimentos. Uma leitura que prende, ávidos de sabermos o que se passará na página seguinte. Mais uma vez, João J. A. Madeira mostra-nos vidas solitárias, no meio da grande cidade, vidas marcadas por um destino que não lhes é favorável. Vale a pena conhecer este escritor, do qual já aqui falei algumas vezes: ver O Rio Que Corre Na Calçada e A Lenda Desconhecida de Francisco Caga-Tacos.

 

 

16 de dezembro de 2020

Um Natal triste

 

Mercado de Natal em Stade, 2010

Por altura do 1.º Domingo do Advento (que este ano foi a 29 de novembro), arrancam os Mercados de Natal, na Alemanha, prolongando-se até aos dias 22 ou 23 de dezembro. É uma grande tradição, que, além de inaugurar a época natalícia, vem trazer luz e calor num clima extremamente agreste. Em dezembro, começa a escurecer pelas três e meia da tarde. E, se o céu estiver nublado, nem chega bem a clarear, durante todo o dia. A isto se juntam temperaturas normalmente negativas. No caso de haver positivas, raramente sobem acima dos 5ºC.

Por isso, todos os anos, as pessoas aguardam ansiosamente os Mercados de Natal, onde, além dos enfeites e quinquilharias natalícias, se encontram comes e bebes e onde o Glühwein é rei (vinho quente com especiarias). Para as crianças, ou adultos que não queiram ou não possam beber álcool, há ponche quente de sumo de frutas, também com especiarias. Até se aprecia o frio cortante, os alemães costumam dizer que o Glühwein só sabe bem, quando está um frio de rachar. E têm razão.

 

Glühwein - Weinhachtsmarkt.jpg

Brindar com Glühwein, no Mercado de Natal (Philipp von Ditfurth/dpa)

 Assim se enchem os centros das cidades de calor humano e convívio. Raramente, os alemães são tão extrovertidos como nos Mercados de Natal. Também há vários palcos espalhados pelo recinto e Stade, onde vivo, não é exceção. O Horst e eu costumamos atuar com o nosso coro Gospel. O público aplaude eufórico, o que nos aquece os corações, mesmo sabendo que muitas das pessoas talvez o faça apenas por já estarem com um grão na asa.

Este ano, não há Mercados de Natal. Apesar de alguma iluminação e uma ou outra árvore enfeitada, os centros citadinos estão vazios. Dezembro parece que custa mais a passar, as pessoas andam tristes. Em janeiro, os dias são igualmente curtos, mas o facto de estarem a crescer e de se ter iniciado um novo ano, tem um efeito psicológico benéfico. Em dezembro, são os Mercados de Natal que costumam afugentar as depressões de inverno.

E a situação piorou. Começou hoje um lockdown total, ou seja, além dos restaurantes, já fechados desde o início de novembro, vão fechar todas as lojas (à exceção de supermercados e farmácias) e as férias de Natal começam mais cedo, a fim de se fecharem as escolas. Nos festejos familiares, apenas se podem juntar, no máximo, quatro pessoas a um agregado familiar. E os revellions foram proibidos, assim como ajuntamentos ao ar livre (muitos alemães costumam ir para a rua lançar foguetes, à meia-noite, um pretexto para se formarem ajuntamentos, com muito álcool à mistura).

À semelhança do que se passa no resto do mundo, a situação nunca esteve tão má, apesar das restrições impostas desde o início de Novembro. Não trouxeram o efeito desejado, pelo contrário: batem-se recordes de números de infetados, na passada sexta-feira, quase se atingiram os 30.000! Se não se encontrar um travão, os hospitais podem mesmo entrar em colapso, no país com um dos melhores sistemas de saúde do mundo.

Mesmo com a vacinação planeada, as pessoas não conseguem ver a luz ao fundo do túnel. Todos temos ainda na memória as imagens do papa Francisco praticamente sozinho, na celebração da Sexta-Feira Santa. Nessa altura, não imaginávamos que as imagens natalícias seriam ainda mais tristes.

27 de novembro de 2020

Epidemias ontem e hoje

 

A Sociedade Medieval Portuguesa.jpg

Durante a peste de Coimbra, em 1477-79, resolveram os do Porto estabelecer um cordão sanitário em torno da sua cidade, que vedava a entrada a todos os que viessem de Coimbra. Tendo-se notado casos de peste numa rua portuense, em 1486, foi resolvido entaipar a dita rua e isolar os respectivos moradores. Outras vezes, em princípio de epidemia levavam-se todos os doentes para lazaretos especiais fora dos muros da cidade. Havendo notícia de peste no estrangeiro, impedia-se a entrada nas fronteiras ou submetiam-se a quarentena passantes e navios.

(…)

Isto sem falar de precauções de carácter geral: abstenção de prazeres sexuais; moderação no comer e no beber; «evitar o banho de cada dia»; fuga a ajuntamentos e contactos com pessoas; uso e abuso da água com vinagre para lavar as mãos, a cara e o interior das casas; permanência dentro da habitação tanto quanto possível, etc.

(…)

Recomendava-se, em qualquer caso, que se bebessem fortes doses de vinagre e líquidos avinagrados.

(pp. 122 a 124)

 

Leríamos este texto de modo diferente, se o tivéssemos feito há um ano. Teríamos compaixão pelas pessoas medievais e dávamos graças a Deus (ou a quem se queira) por vivermos numa época livre de pestes e epidemias. Aliás, este ponto de vista é latente em certas passagens deste capítulo, dedicado à higiene e à saúde, sem pôr em causa a excelência de A. H. de Oliveira Marques, falecido em 2007, o primeiro historiador português a publicar um livro sobre o quotidiano medieval, nas suas várias facetas.

Ao ler o texto hoje, vemos as semelhanças com um tempo que julgávamos morto e enterrado. Nem sequer faltava a recomendação de beber líquidos julgados eficazes, como “fortes doses de vinagre e líquidos avinagrados”. E, se o ingerir de tanto vinagre pudesse provocar outros problemas de saúde, não seria com certeza tão perigoso como a lixívia…

Enfim, anedotas à parte, o certo é que também se recomendavam mezinhas que, muitas vezes, eram fatais. E resta-nos o consolo de viver num tempo, em que se sabe o que são vacinas e se dispor de meios para as obter.

Mas será que as já existentes trarão o efeito desejado?

 

Dados sobre a obra citada: A SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA, A. H. de Oliveira Marques (A Esfera dos Livros, 6ª edição: Setembro de 2010)

14 de novembro de 2020

Siddhartha

 


Não se põe em causa a qualidade literária e a beleza deste livro. Trata-se de um clássico, escrito por um dos autores mais conhecidos no mundo. Quem nunca ouviu falar de Hermann Hesse? E quem não sabe que Hermann Hesse ganhou o Prémio Nobel? Limito-me, por isso, a algumas reflexões que o conteúdo me suscitou.

Hermann Hesse era, sobretudo, um pensador, na incessante procura do sentido da vida e do significado de felicidade. Não encontrando respostas satisfatórias na nossa civilização ocidental, virou-se para a cultura indiana e os valores budistas. Também a sua personagem Siddhartha, um indiano, começa cedo essa procura, juntando-se, na companhia de um amigo, aos seguidores de Buda. Chega a conhecer pessoalmente o próprio mestre e vive, durante sete anos, segundo os seus preceitos.

Siddhartha aprende a dominar o desejo, a dor, a fome e a sede; fica imune a sentimentos e emoções. É esse o sinónimo de felicidade? Não necessitar de nada e não se deixar atingir por nada? Siddharhta acha que não. A resposta não pode estar no ignorar do nosso próprio corpo, em anular aquilo que somos. Por isso, Siddhartha deixa o grupo à volta de Buda, separando-se igualmente do seu grande amigo, e continua a sua busca.

Chegado a uma cidade, dá-se uma viragem inesperada na sua vida. Torna-se o homem de confiança de um comerciante rico, graças à sua inteligência e à sua disciplina. Conhece igualmente o prazer carnal, ao iniciar uma relação com uma concubina, na verdade, uma prostituta de luxo. Esta é, para mim, uma fraqueza desta obra-prima da literatura. Embora Hermann Hesse conceda a Siddhartha capacidade para admirar e respeitar a sua amante, ela mais não é do que uma conhecida fantasia masculina: uma mulher afável e inteligente, que ensina a um homem inexperiente tudo o que há a ensinar sobre sexo, não exigindo qualquer compromisso da parte dele. O texto não é muito claro quanto à possibilidade de ela continuar a servir outros clientes, mas depreende-se que sim, já que Siddhartha não sente qualquer tipo de responsabilidade em relação a ela.

Ao fim de sete anos, porém, Siddhartha sente-se desiludido com a sua nova vida. O zelo que ele põe em tudo quanto faz torna-se exagerado, ao ponto de ele se ir tornando um tiranete, exasperando os clientes e parceiros de negócios do seu patrão. A insatisfação de Siddhartha leva-o a querer mais e mais, chegando à conclusão que também não é o luxo que dá sentido à vida. Resolve então deixar o emprego, a cidade e, por muito que lhe custe, a concubina, que aprendeu a amar. E ela, continuando a corresponder à fantasia masculina, nem lhe revela que está grávida dele.

Siddhartha acaba por encontrar satisfação a trabalhar como barqueiro, transportando pessoas de uma margem para a outra de um rio (o qual se torna na metáfora da vida), observando a Natureza e ouvindo as histórias de quem transporta. Constata não precisar de mais nada para ser feliz. Passado uns anos (e sem me querer alargar muito sobre o enredo), toma conta do filho adolescente, depois da morte da mãe. Porém, habituado à vida luxuosa na cidade, o jovem é incapaz de se adaptar àquela vida simples, o que entristece o pai. Por outro lado, Siddhartha nada faz para se aproximar do próprio filho, acha que o rapaz tem de ver, por ele, as vantagens que o seu tipo de vida traz, em relação à vida citadina. O jovem, amargurado e triste, acaba por regressar à cidade.

Penso que Siddhartha, apesar de toda a sua sabedoria, falha como pai. O rapaz só o conhece quase adolescente (ou seja, o pai é um estranho para ele); vê-se, de repente, a ter de adotar um estilo de vida que não conhece e, para piorar tudo, o pai pouco fala, passa a vida, ou a exercer a sua profissão de barqueiro, ou muito sossegado, a meditar. Recordemos que o filho ainda não é adulto e acabou de perder a mãe, que o criou sozinha. Quando parte, a fim de regressar à cidade, Siddhartha conforma-se: enfim, o rapaz lá fez a sua escolha. Depois de nada ter feito pelo filho, acho esta atitude de um egoísmo atroz, não tendo nada a ver com a condição de pai.

Siddhartha mostra-nos que uma vida sem luxos pode ser (e talvez seja sempre) mais satisfatória. O equilíbrio e a felicidade devem ser encontrados dentro de nós. Por outro lado, tal posição parece incompatível com o assumir de compromissos, com uma vida familiar, que implica assumir responsabilidade por outros que dependem de nós. A meu ver, essa a grande falha de Siddhartha.

8 de novembro de 2020

História viva

 

Museu Casa da Roda Torre de Moncorvo

Museu Casa da Roda, Torre de Moncorvo © 2016 Horst Neumann

 

Antigamente, os bebés abandonados eram denominados de expostos. Existiam casas da roda um pouco por todo o país. Na Lisboa queirosiana, o hospital dos expostos da Santa Casa da Misericórdia era o destino de cerca de trezentos e cinquenta bebés por ano. Estes são vários registos de baptismo dessas crianças. Concentremo-nos no primeiro, o Assento nº 4:

1890-01-08 Carlos da Graça e Santos PT-ADLSB-PRQ-

«No dia oito do mês de Janeiro do ano de mil oitocentos e noventa, pelas duas horas e meia da tarde, entrou para o Hospital dos expostos de Lisboa, uma criança do sexo masculino, nascida em vinte e três de Dezembro do ano próximo findo, trazendo o seguinte: camisa, fralda e envolvedouro de algodão, um cueiro de baetilha branca, um embrião (?) de chita de riscas amarelas e encarnadas com raminhos pretos, touca de malha de lã cor de rosa e branca e um xaile de algodão em xadrez preto e branco. Foi hoje solenemente baptizado com o nome de Carlos pelo Reverendo José António Conceição Vieira, tesoureiro da Igreja da Santa Casa da Misericórdia; sendo padrinho o moço de capela Manuel de Oliveira Nunes. E para constar, lavrei este assento, que assino com o referido padrinho.

Padre Leonardo Avelino Ribeiro

Manuel de Oliveira Nunes»

Na barra do lado direito, foi, mais tarde, acrescentado o seguinte:

«Este exposto casou com Ana de Jesus Coelho, no dia 03 de Novembro de 1909, como consta do ofício do Reverendo prior de Assentiz, de 20 do corrente. Lisboa, 23 de Novembro de 1909. O substituto do Padre ??? Padre Fonseca»

A noiva, Ana de Jesus Coelho, tinha dezanove anos e o exposto, que, no registo de casamento, surge com o nome de Carlos da Graça e Santos, também ainda não completara os vinte. Casaram na freguesia de Assentiz, concelho de Torres Novas, a terra-natal da noiva. Carlos e Ana tiveram nove filhos. A terceira dessas crianças foi batizada com o nome de Deolinda e haveria de ser a minha avó materna.

É difícil de descrever a comoção sentida, quando finalmente encontrei o registo de batismo do bisavô Carlos. Não fazia ideia de que ele tinha estado na Santa Casa. Na família, sempre se disse que era filho de um padre, mas falava-se na freguesia do Olival, concelho de Ourém, onde a minha avó e, penso, os seus irmãos nasceram. Também se diz que o padre vivia com uma irmã e uma prima, sendo esta a mãe do filho dele, mas as pessoas ainda vivas não sabem dizer nomes, ou outros pormenores. Ou não querem dizer.

Ao encontrar o registo, senti-me muito próxima deste bisavô, que nunca conheci. A descrição das roupinhas faz-me pensar que estava bem tratado. Pergunto-me, porém, como se sabia a data do seu nascimento. Noutros registos, referem-se certidões que os bebés traziam consigo, passadas nos hospitais onde nasciam; outros nada traziam e são batizados, sem se referirem datas. No caso do meu bisavô, porém, há uma data de nascimento, sem se explicar de onde ela vem.

A pesquisa familiar é, para mim, fascinante, embora seja uma actividade que exige muito tempo, muita persistência e ânimo para ultrapassar desilusões de documentos perdidos, ou de perguntas por responder (além do esforço para decifrar estas escritas antigas). Ainda assim, em Portugal, a pesquisa está bastante simplificada. Na página https://tombo.pt/ tem-se gratuitamente acesso a muitos livros paroquiais digitalizados (e continuam a digitalizar-se os que faltam). É um excelente trabalho dos nossos arquivos, que me permite fazer esta pesquisa a 2.500 km do meu país, confortavelmente, em casa.

O meu lado materno é bastante variado, abrange V. N. de Gaia, Mealhada, Torres Novas e possivelmente Lisboa. Infelizmente, nunca vou ficar a saber onde nasceu o meu bisavô Carlos, nem quem eram os seus pais. Já o lado paterno é mais simples, pois quase toda a família é proveniente da freguesia transmontana do Lombo, concelho de Macedo de Cavaleiros. Numa certa linha, já cheguei ao século XVII, ao encontrar o registo de um casal que contraiu matrimónio a 14 de abril de 1698, Miguel Moreno e Catarina Alves, meus oitavos avós.

 

1698-04-14 Casamento Miguel Moreno e Catarina Alve

 

Não ando à procura de antepassados nobres, que não os tive. Mas, por algum motivo, fascina-me saber quem eles eram e tento imaginar as suas vidas. Ao mesmo tempo, aprendo bastante sobre o Portugal de antigamente, pois, como diz o Professor Mattoso: «O passado dos homens não foi só a sua vida pública. Foi também o jogo ou a luta de cada dia e aquilo em que eles acreditaram».

Não obstante, também do lado do meu pai vão ficar questões por esclarecer. À parte um trisavô filho de pai incógnito (precisamente, o trisavô Torrão!), tive uma bisavó espanhola, natural da freguesia de Fonfria, concelho de Alcanices. Acontecia bastante famílias espanholas assentarem arraiais em aldeias transmontanas. Contudo, no reino de nuestros hermanos, parece não existir uma página que me permita consultar os livros paroquiais online. Teria de ir ao arquivo de Zamora e passar lá um dia, ou dias, inteiros, a consultar os calhamaços. Isto, claro, se conseguisse ler o castelhano de séculos passados…

Fico com pena de nunca ter conhecido o bisavô Carlos, que foi depositado, ainda tão frágil, no hospital dos expostos. Nem sequer tenho uma fotografia dele. Mas tenho da mulher com quem ele casou, que aliás me lembro de visitar, em Porto de Mós, onde ela faleceu em 1976, tinha eu quase onze anos.

 

Ana Coelho.jpg

Bisavó Ana de Jesus Coelho, mãe da minha avó materna

(que esteve a 13 de outubro de 1917 em Fátima, no meio do povo que lá se reuniu e diz ter assistido ao milagre do sol)

28 de outubro de 2020

«Para eles, Trump é um Messias»

 Excertos de uma entrevista dada pelo sociólogo norte-americano Philip Gorski, Professor na Universidade de Yale, à edição de 11 de outubro de 2020 do Jornal Católico da diocese alemã de Hildesheim, em que se analisa o apoio incondicional dado a Trump pelos evangélicos norte-americanos:

Qual a razão de muitos evangélicos serem apoiantes incondicionais de Trump?

Para eles, o essencial é a proibição do aborto e do casamento entre homossexuais. Até podem criticar a política migrante de Trump, ou não aprovar o comportamento pessoal do Presidente - no fim, tudo isto é secundário. Aqueles dois temas estão acima de quaisquer outros.

Porque consideram eles esses temas tão mais importantes do que outros temas cristãos, como a justiça social, o clima, ou a proteção dos refugiados?

Isso explica-se, em parte, do ponto de vista psicológico. Muitos temas políticos permanecem abstratos para certos conservadores norte-americanos, como impostos, alianças internacionais ou proteção do ambiente. Têm dificuldades em estabelecer uma relação com questões desse tipo. Já no que concerne ao aborto ou ao casamento homossexual, estabelecem, de imediato, uma ligação emocional, porque veem aí uma ameaça aos seus valores familiares tradicionais. O casamento monogâmico e heterossexual é, para eles, muito central - pretendem manter a sociedade limpa de todos os comportamentos que não se coadunem com estes seus valores. Os Republicanos vêm propagando a ameaça a estes valores familiares nos últimos anos, a fim de espetar uma cunha entre os conservadores católicos e o Partido Democrata.

Como se explica que especialmente os evangélicos brancos se sintam ameaçados?

Para eles, os Estados Unidos da América são uma nação branca e cristã, fundada por Protestantes brancos e prósperos. Sentem esta identidade ameaçada pela secularização, pela imigração e pelos não-cristãos. Sentem-se realmente como o grupo mais ameaçado e perseguido dos EUA. E consideram necessitar de um protetor forte e impiedoso, que os defenda a todo o custo.

E esse protetor é Trump?

Exatamente. Muitos acreditam mesmo que Trump é um enviado de Deus, um instrumento de Deus. Trump é, para eles, um Messias. Comparam-no ao rei Ciro do Velho Testamento, que libertou os israelitas do cativeiro babilónico. Muitos evangélicos leva a Bíblia à letra e estabelecem permanentemente paralelos entre a política atual e o Apocalipse. Consideram estar no meio de uma luta entre o Bem e o Mal. Eles, os evangélicos, estão naturalmente do lado do Bem - os seus opositores políticos e culturais corporizam o Mal.

E Trump sustenta essa sua crença?

Sim, Ele vê o mundo tal como eles: divide-o entre amigo e inimigo, Mal e Bem. O seu princípio é olho por olho, dente por dente (…) Ficaria surpreendido se me dissessem que ele, em toda a sua vida, tivesse mais de uma hora de leitura da Bíblia. Mas, como todos os demagogos, ele possui grande capacidade de sentir como o público reage à sua pessoa e de escolher os temas que provocam a reação mais forte.

Quão importante é para os eleitores cristãos a manutenção da democracia?

Não tão importante como se possa pensar. Sobretudo os brancos evangélicos e muitos católicos conservadores vão tomando uma direção cada vez mais autoritária. Eles consideram inclusive a democracia ser um obstáculo que os impede de alcançar os seus fins políticos. Muitos dizem abertamente desejarem uma ditadura.