Museu Casa da Roda, Torre de Moncorvo © 2016 Horst Neumann
Antigamente, os bebés abandonados eram denominados de expostos. Existiam casas da roda um pouco por todo o país. Na Lisboa queirosiana, o hospital dos expostos da Santa Casa da Misericórdia era o destino de cerca de trezentos e cinquenta bebés por ano. Estes são vários registos de baptismo dessas crianças. Concentremo-nos no primeiro, o Assento nº 4:
«No dia oito do mês de Janeiro do ano de mil oitocentos e noventa, pelas duas horas e meia da tarde, entrou para o Hospital dos expostos de Lisboa, uma criança do sexo masculino, nascida em vinte e três de Dezembro do ano próximo findo, trazendo o seguinte: camisa, fralda e envolvedouro de algodão, um cueiro de baetilha branca, um embrião (?) de chita de riscas amarelas e encarnadas com raminhos pretos, touca de malha de lã cor de rosa e branca e um xaile de algodão em xadrez preto e branco. Foi hoje solenemente baptizado com o nome de Carlos pelo Reverendo José António Conceição Vieira, tesoureiro da Igreja da Santa Casa da Misericórdia; sendo padrinho o moço de capela Manuel de Oliveira Nunes. E para constar, lavrei este assento, que assino com o referido padrinho.
Padre Leonardo Avelino Ribeiro
Manuel de Oliveira Nunes»
Na barra do lado direito, foi, mais tarde, acrescentado o seguinte:
«Este exposto casou com Ana de Jesus Coelho, no dia 03 de Novembro de 1909, como consta do ofício do Reverendo prior de Assentiz, de 20 do corrente. Lisboa, 23 de Novembro de 1909. O substituto do Padre ??? Padre Fonseca»
A noiva, Ana de Jesus Coelho, tinha dezanove anos e o exposto, que, no registo de casamento, surge com o nome de Carlos da Graça e Santos, também ainda não completara os vinte. Casaram na freguesia de Assentiz, concelho de Torres Novas, a terra-natal da noiva. Carlos e Ana tiveram nove filhos. A terceira dessas crianças foi batizada com o nome de Deolinda e haveria de ser a minha avó materna.
É difícil de descrever a comoção sentida, quando finalmente encontrei o registo de batismo do bisavô Carlos. Não fazia ideia de que ele tinha estado na Santa Casa. Na família, sempre se disse que era filho de um padre, mas falava-se na freguesia do Olival, concelho de Ourém, onde a minha avó e, penso, os seus irmãos nasceram. Também se diz que o padre vivia com uma irmã e uma prima, sendo esta a mãe do filho dele, mas as pessoas ainda vivas não sabem dizer nomes, ou outros pormenores. Ou não querem dizer.
Ao encontrar o registo, senti-me muito próxima deste bisavô, que nunca conheci. A descrição das roupinhas faz-me pensar que estava bem tratado. Pergunto-me, porém, como se sabia a data do seu nascimento. Noutros registos, referem-se certidões que os bebés traziam consigo, passadas nos hospitais onde nasciam; outros nada traziam e são batizados, sem se referirem datas. No caso do meu bisavô, porém, há uma data de nascimento, sem se explicar de onde ela vem.
A pesquisa familiar é, para mim, fascinante, embora seja uma actividade que exige muito tempo, muita persistência e ânimo para ultrapassar desilusões de documentos perdidos, ou de perguntas por responder (além do esforço para decifrar estas escritas antigas). Ainda assim, em Portugal, a pesquisa está bastante simplificada. Na página https://tombo.pt/ tem-se gratuitamente acesso a muitos livros paroquiais digitalizados (e continuam a digitalizar-se os que faltam). É um excelente trabalho dos nossos arquivos, que me permite fazer esta pesquisa a 2.500 km do meu país, confortavelmente, em casa.
O meu lado materno é bastante variado, abrange V. N. de Gaia, Mealhada, Torres Novas e possivelmente Lisboa. Infelizmente, nunca vou ficar a saber onde nasceu o meu bisavô Carlos, nem quem eram os seus pais. Já o lado paterno é mais simples, pois quase toda a família é proveniente da freguesia transmontana do Lombo, concelho de Macedo de Cavaleiros. Numa certa linha, já cheguei ao século XVII, ao encontrar o registo de um casal que contraiu matrimónio a 14 de abril de 1698, Miguel Moreno e Catarina Alves, meus oitavos avós.
Não ando à procura de antepassados nobres, que não os tive. Mas, por algum motivo, fascina-me saber quem eles eram e tento imaginar as suas vidas. Ao mesmo tempo, aprendo bastante sobre o Portugal de antigamente, pois, como diz o Professor Mattoso: «O passado dos homens não foi só a sua vida pública. Foi também o jogo ou a luta de cada dia e aquilo em que eles acreditaram».
Não obstante, também do lado do meu pai vão ficar questões por esclarecer. À parte um trisavô filho de pai incógnito (precisamente, o trisavô Torrão!), tive uma bisavó espanhola, natural da freguesia de Fonfria, concelho de Alcanices. Acontecia bastante famílias espanholas assentarem arraiais em aldeias transmontanas. Contudo, no reino de nuestros hermanos, parece não existir uma página que me permita consultar os livros paroquiais online. Teria de ir ao arquivo de Zamora e passar lá um dia, ou dias, inteiros, a consultar os calhamaços. Isto, claro, se conseguisse ler o castelhano de séculos passados…
Fico com pena de nunca ter conhecido o bisavô Carlos, que foi depositado, ainda tão frágil, no hospital dos expostos. Nem sequer tenho uma fotografia dele. Mas tenho da mulher com quem ele casou, que aliás me lembro de visitar, em Porto de Mós, onde ela faleceu em 1976, tinha eu quase onze anos.
Bisavó Ana de Jesus Coelho, mãe da minha avó materna
(que esteve a 13 de outubro de 1917 em Fátima, no meio do povo que lá se reuniu e diz ter assistido ao milagre do sol)