Republico o texto que escrevi para o Delito de Opinião, ao aceitar o amável convite do Pedro Correia, concretizado a 4 de Fevereiro passado, agora que, continuando a minha série sobre D. Afonso Henriques, vou entrar na fase em que o nosso primeiro rei inicia os seus combates contra os mouros.
D. Afonso Henriques e os Mouros |
Desde que me dediquei à pesquisa histórica medieval, aprendi que devemos aos mouros esta maneira portuguesa de ser, que se costuma resumir na palavra "saudade". E, no entanto, desprezamos a nossa herança islâmica. Tenciono chamar a atenção para esse desprezo a que votamos uma parte importante do nosso passado. Porque quem insiste em esquecer o seu passado, ignora parte da própria identidade.
Embora, nos últimos anos, tenha havido um certo esforço por parte de alguns historiadores e arqueólogos, existem poucas obras profundas sobre o período islamita em terras portuguesas. Quem eram os líderes islâmicos que aqui dominaram durante quatro séculos? Quais os seus contributos para o desenvolvimento das regiões, da cultura, etc., etc.?
Sabe-se, por exemplo, que os mouros possuíam conhecimentos muito mais avançados do que os cristãos. Com as suas invenções, como a nora e outros sistemas de irrigação, que incluíam canais subterrâneos, fizeram florescer a agricultura em regiões inóspitas. Traduziram as obras dos filósofos e médicos gregos da Antiguidade para o árabe e, a partir daqui, para o latim, permitindo à Cristandade entrar em contacto com escritos esquecidos desde o desmoronar do Império Romano. Aliás, tomando o exemplo da Medicina, não se pode comparar o nível dos médicos islâmicos de então com os cristãos, razão pela qual aqueles eram procurados pelos próprios monarcas hispânicos. Que tentavam, ainda, imitar, a todo o custo, o luxo e a grandeza das cortes mouras.
O próprio D. Afonso Henriques teve uma relação de amizade com Ibn Qasî, um líder islâmico originário de Silves. O teor dessa amizade ainda hoje se encontra coberto pela penumbra, pois falta quem se interesse pelo assunto. Ibn Qasî era líder do movimento espiritual sufi, que tinha o seu centro em Mértola.
Muito mais haveria para dizer sobre o tema, mas, como este texto se resume a uma chamada de atenção, refiro um último aspecto: a influência moura em Portugal não acabou com a conquista do Algarve por D. Afonso III. Persistiram as mourarias, os bairros destinados aos mouros, nas cidades mais importantes do reino. Num lindíssimo livro (tanto a nível de texto, como de ilustrações) intitulado Em busca da Lisboa Árabe, publicado pelos CTT em 2007, Adalberto Alves fala-nos no drama vivido pelos últimos mouros em terras portuguesas, depois de D. Manuel I decretar, em 1496, a expulsão do reino de todos os que não se convertessem à fé católica.
Muitos conseguiram simular uma integração, mas ficaram sujeitos às mais variadas atribulações, no que constituiu um dos maiores dramas da História da Península do século XVI. Como nos diz Adalberto Alves, na obra referida: “transformados em marginais, rufiões e desclassificados, ébrios de fatalidade, frequentavam ainda Alfama e Mouraria vagueando como fantasmas gastos, sob a pálida memória dos seus antepassados”; “inventam um género musical e com ele cantam o seu fado”; “ao percorrermos certas alfurjas esquecidas de Lisboa antiga, parece sentirmos ainda como que os ecos longínquos desses fados esquecidos, onde o árabe se enroupava em português para exprimir o lamento dos humilhados do destino.”
No livro, é ainda reproduzida, na página 147, uma fotografia do autor na companhia de Amália Rodrigues, que, como Adalberto Alves nos diz, “estava intimamente convicta da parentela entre o fado e a música árabe, que muito apreciava”.
Para quando estudos sérios (livros, ensaios, programas de televisão) sobre este e outros aspectos da cultura moura em Portugal?
Quando deixaremos nós de desprezar a nossa herança islâmica?
Eu gostaria que uma boa parte do petróleo deles fizesse parte dessa herança... ;)
ResponderEliminarBom texto.
A lacuna na nossa história, que corresponde ao período de permanência árabe na península e mais concretamente em Portugal (que ainda não era) é intrigante. Contudo os árabes não permaneceram por cá, mais de 4 séculos, o que em termos históricos, é manifestamente pouco tempo. Apesar de todo o conhecimento que detinham, a cultura dos árabes é revestida de um certo hermetismo, que, sujeito a uma cultura religiosa inacessível e reservada, será provávelmente motivo para uma completa reserva.
ResponderEliminarAssociado a tudo isto, está inequívocamente um forte sentimento xenófobo acirrado por parte dos barões bretões e borgonheses, contra os infieis àrabes que haviam tomado a península, aproveitando a fragilidade dos reinos que se encontravam em guerra entre si.
Não se pode ter tudo, implume :P
ResponderEliminarBartolomeu, é verdade que 4 séculos, em termos históricos, não são muito tempo. E eu dou comigo a constatar que também não há grandes obras sobre o tempo visigótico, nem sobre os moçárabes, os cristãos, descendentes dos visigodos, que não se refugiaram nas Astúrias e que viveram entre os mouros. Quando veio a Reconquista, eles eram diferentes dos outros cristãos, dizem os livros de História que praticavam os velhos ritos visigóticos. Mas quais eram esses ritos? Ainda não encontrei informação, mas também confesso que ainda não me empenhei muito nisso. Talvez alguém que por aqui passe saiba alguma coisa :)
De qualquer maneira, eu acho que a influência moura no carácter português foi enorme, maior do que o que pensamos.
Sim, sim, inteiramente de acordo no que respeita a diferentes aspectos do dia-a-dia, a começar pela toponímia e algum vocabulário. Se sairmos da cidade para o campo, encontramos costumes enraizados com origem nesses tempos, o que confere o princípio do avanço na concepção e uso de ferramentas e alfaias... olha, nem de propósito... alfaias, mais uma palavra de raíz árabe que se utiliza todos os dias. ;)
ResponderEliminarQuanto aos rituais que os visigodos cumpriam, penso que encontraremos reminiscências nos rituais Celta que ainda hoje são praticados no norte da península e na Irlanda. Também não sou conhecedor deste assunto, mas a ideia que tenho, é que os mesmos se baseiam na interacção directa com os elementos naturais, superlativados nos quatro principais; Terra, Ar, Água e Fogo.
Uma cultura que perdemos com a romanização, e depois com o domínio árabe, prevalecendo o Cristianismo.
Concordo plenamente de que há essa lacuna na nossa cultura, o que leva a que se ignore o que de bom os árabes nos trouxeram. Em 10/02 registei com agrado um artigo de António Cabrita intitulado "Nós, Árabes" que foca alguns aspectos da permanência dos árabes entre nós. Um livro que saiu não há muito tempo, "A mão de Fátima" de Ildefonso Falcones, espanhol, apresenta o drama, no Sec.XVI, de um rapaz dividido entre as duas culturas, muçulmana e cristã.Não terá sido o único a sofrer com a transição, tanto lá como cá.Uma História que ainda está por fazer.
ResponderEliminarOlinda
Como assim 4 séculos?
ResponderEliminarSe a influência moura no actual território português começa da década de 710 e termina em 1249, a minha calculadora do windows dá-me mais de 530 anos... mais de meio milénio. Não me parece nada pouco.
A influência cultural foi profunda, até ao nível dos descobrimentos.
Tem razão, embora os números enganem um pouco. No norte do país (até à zona do rio Douro) estiveram pouco mais de cem anos; e, no século XIII, limitavam-se ao Algarve. De qualquer maneira, estiveram, de facto, mais de 500 anos em território português.
ResponderEliminarPara sermos corretos, a sua influência até foi além de 1249, já que por aqui ficaram muitos, pelas mourarias, depois das conquistas de Afonso III.
E a sua influência foi enorme, sim. Ainda hoje possuímos uma alma moura.