"Os pais do Amável estavam mortos. Sobrava um casebre colado à igreja, e a memória que todos guardavam dele era a de um menino triste, franzino, doente, efeminado. Fora até com grande espanto que o haviam visto partir cheio de coragem para terras de África, em busca de felicidade e fortuna; e, ao longo dos anos, foram correndo rumores de que estava muito bem instalado em Luanda, com mulher e filhos, homem feito, senhor de grandes propriedades no Norte de Angola, mais de quinhentos pretos ao seu serviço. Mas, contra todas as expectativas, o Amável que regressou assemelhava-se em tudo ao Amável que partira. Vinte anos mais velho, é certo. Sem mulher, sem filhos, sem pretos. O mesmo andar cabisbaixo, o mesmo tom de voz de quem pede constantemente autorização ao mundo para falar, para existir.
Toda a aldeia se compadeceu com o seu infortúnio e meteu mãos à obra. Em cinco dias, num formidável esforço coletivo, o casebre colado à igreja parecia outro: telhado novo, canalizações, eletricidade, mobílias, comida. Mas o Amável não dava sinal de melhoras, pelo contrário, e já muita gente andava convencida de que tinha trazido uma doença má dentro dele. Doença que até podia ser contagiosa. Os olhos estavam esquisitos. A pele. O cheiro. Habituação ao clima, diziam uns. Malária, diziam outros. Desgostos, concordavam todos.
Os dias foram passando e, como não evidenciava melhoras, mais do que convencê-lo, obrigaram-no a ir ao consultório do doutor Augusto Mendes que, após breve auscultação, perguntou: «Ó Amável, há quanto tempo é que tu não cagas?» E o outro, corado de vergonha, lá respondeu: «Há mais ou menos um mês, senhor doutor.»
O doutor Augusto Mendes mandou-o baixar as calças e colocar-se de gatas, e aviou-lhe um valente clister.
Ora, quando a barriga do pobre Amável começou a dar sinais de vida, o desgraçado, em vez de se aliviar logo ali, saiu disparado do consultório e desatou a correr estrada abaixo, a caminho de casa. Mas, no momento em que ia a passar, de calças na mão, à frente da taberna da Henriqueta, um jorro de merda saiu-lhe pelo rabo.
O Amável endoideceu, não tiveram dúvidas. E o espanto ainda foi maior assim que o viram a revolver o monte de merda com as próprias mãos, como se andasse à procura de qualquer coisa. E tanto procurou que encontrou: um saquinho de plástico que, presumiram todos, estaria cheio de pequenos diamantes. Estivesse ou não, fossem diamantes ou outra coisa qualquer, o Amável deixou as calças, as cuecas, a camisa, o monte de merda, no meio da estrada, e nunca mais ninguém o viu."
O Teu Rosto Será o Último, João Ricardo Pedro (Prémio Leya 2011)
Oh, pááá, então vais ler o meu livrito logo a seguir ao premiado? 'tou feita, eheheh.
ResponderEliminarOlá, Cristina
ResponderEliminarUm livro que me parece muito interessante a avaliar pelo excerto.
:)
Bj
Olinda
Carla, são dois géneros completamente diferentes, difíceis de comparar. Além disso, o premiado, apesar de ter momentos hilariantes como este (pelo menos, para mim; há gente que não gosta de expressões, digamos, vernáculas) tem outros momentos menos bons, ou que me agradaram menos. Em breve publicarei a opinião completa.
ResponderEliminarOlinda, acho que vale a pena ler, mas, como disse, também lhe achei "defeitos".