Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de agosto de 2013

Silêncio

Ao completar os 25 anos, a revista Ler iniciou o projeto 15/25, convidando jovens dos 15 aos 25 anos a enviarem os seus textos. Os melhores são publicados em cada edição da revista. No número de Junho passado, houve um texto, de uma jovem de 19 anos, que me seduziu da primeira à última palavra. Intitula-se Silêncio e transcrevo-o aqui, com a devida vénia à Inês Valadas, de Reguengos de Monsarás:

Quero falar com alguém. Já queria falar com alguém ontem, quando não conseguia adormecer. Era tarde; é sempre tarde quando eu não consigo adormecer e acho que se falar com alguém o sono chega. Mas na verdade sei que o sono não chega e na verdade sei que não há nada para dizer a ninguém. Estou triste. Duas palavras e a necessidade extrema de me afogar.
Houve um tempo em que a tristeza era feita de momentos e horas. Era feita de uma sensação de líquido quente a passar-me na garganta. Demorava tempo a descer. Fazia-me correr às voltas no quarto como se num descampado de frente para o horizonte. - Tocar no nada. E pôr as mãos em tudo. Achava sempre que se corresse de encontro ao horizonte ia chegar a outro lado, em que a minha tristeza não fosse minha. Eu ia contra as paredes, eu via o branco e sabia que um dia as palavras não iam chegar. E cansava-me, como se houvesse de que estar cansada. Era o cansaço de quem não dorme mil anos, e mil anos procura por algo que não encontra.
Ontem quando quis falar com alguém, não o quis realmente. Era a necessidade de deixar sair a tristeza. Alojou-se na garganta e tornou-se seca. Tornou o peito ainda mais seco que a garganta. A minha pele está cheia de cicatrizes invisíveis. Eis a beleza. A beleza que abraço como se outro género nunca pudesse chegar-me. Não é brilhante. É áspera e cinzenta. É a beleza de quem quer chorar e não consegue porque a tristeza já não é líquida. Fez-se pedra. Agora quando abro a boca só sai silêncio - enrolo-me como se num cobertor. Continua a fazer frio.
Tenho a cabeça sintonizada em perguntas que não faço a ninguém. Porque ninguém tem a resposta. Ser autossuficiente em sentimentos passou a ser uma forma de viver e não um estado de guarda. Sou de mim, tudo o que os outros deveriam ser. Faço de mim tudo o que eles não conseguem fazer. E no entanto abandono-me. Acabo com a escuridão à cabeceira, como familiar que me vê morrer. Nestes dias tenho morrido muito. Tenho ficado sentada como que invisível na passividade dos dias e passividade me tenho tornado. Um oceano de águas escuras e espessas que se movem tão lentamente quanto o modo de câmara lenta. E deixo-me estar, levada por ondas que não me salvam nem me condenam. Se há um inferno, deve ser isto. Não ser capaz de viver e não ser capaz de morrer.
Em tudo me anulo na justificação de algo que não sei o que é. Para todos acho que preciso de ter justificações e esqueço-me que somos como ilhas longe de terra. Onde vivo, não existem barcos. Nem quem tenha coragem de nadar.
Duas palavras e a vontade extrema de me afogar em mim. Como cair para sempre e sentir o corpo leve. Podia jurar que chove dentro de mim. E a suposta luz do sol não abre espaço a que eu possa dizer: estou triste.
Talvez queira conversar com alguém amanhã. Ou só ficar em silêncio. Sei que estou cansada, um cansaço de mil anos. Cansaço que vai durar para sempre.
Se há um inferno, deve ser isto. Não ser capaz de adormecer e não ser capaz de acordar realmente.


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