Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.
29 de abril de 2011
Pedofilia
Felizmente, o abuso sexual de crianças está a deixar de ser um tema tabu, algo menorizado. Antigamente, escondia-se essa realidade, tanto por vergonha, como pela crença de que o que se passava na infância era rapidamente esquecido. Hoje, sabemos que não é assim, vivências traumáticas deixam marcas, martirizam-nos durante uma vida inteira.
A questão que muito pais se põem é: qual a melhor maneira de protegermos os nossos filhos? Uma vigilância 24 horas por dia, só não é possível, como não aconselhável. Uma criança super-protegida é uma criança/jovem medrosa/o, com dificuldades de encontrar o seu caminho na vida. Mas como preparar as crianças para certas situações, sem lhes meter medo?
O melhor é alimentar a sua auto-estima, contribuir para um espírito forte e decidido, mostrar-lhes que, como qualquer ser humano, elas têm fronteiras que merecem ser respeitadas. Têm-se feito seminários, nas escolas alemãs do ensino básico, e todos passam por certos princípios que as crianças devem assimilar. Dizer-lhes, por exemplo:
- O teu corpo pertence-te só a ti!
- Os teus sentimentos são importantes!
- Há toques e festas que são agradáveis, outros desagradáveis. Tu tens o direito de dizer não!
- Há segredos bons, mas também há segredos maus. Procura ajuda e fala sobre o que te atormenta!
Muitas vezes, frases deste tipo são inseridas em canções, que se ensinam às crianças, para que decorem e interiorizem estes conceitos mais facilmente (principalmente, "tenho o direito de dizer não").
Infelizmente, constata-se o uso frequente de frases do tipo:
- O menino não tem querer!
- Eu é que decido o que é melhor para ti!
- Não sejas malcriado com o/a senhor/a que te quer fazer uma festa/dar um beijinho!
- Não sejas respondono/a!
- Não queres? Não gostas? Ai a formiga já tem catarro!
Frases destas são muito contraproducentes. Se a criança não quer dar beijinho, porque há-de ser obrigada a dar? Se não se sente bem ao lado de determinada pessoa, porque há-de ser obrigada a ficar lá? Para não deixar mal os pais? Para não ter fama de mal-criada? Tudo crenças prejudiciais! Os pais/educadores devem, acima de tudo, agir de acordo com os interesses/necessidades dos seus filhos e, não, preocupar-se em deixar nos outros boa ou má impressão. Devem-se levar a sério os sentimentos infantis, aproveitar a sua franqueza. As crianças que não estão habituadas a seguir os seus sentimentos e as suas vontades, até mesmo a sua intuição, crianças que não são respeitadas, são incapazes de dizer não e de estabelecer as fronteiras, que salvaguardam a sua intimidade. Presas fáceis para pedófilos!
Se o pior aconteceu e a criança se abre com algum adulto da sua confiança, há regras básicas que devem ser seguidas. A primeira, é acreditar nela e assegurar-lhe que não lhe cabe qualquer culpa. Deve-se manter a calma e mostrar-lhe que pode confiar em nós, mas, ao mesmo tempo, não lhe fazer promessas que não se podem cumprir, por exemplo, não lhe prometer não contar nada a mais ninguém. Também não nos devemos precipitar, ao confrontar o pedófilo com os seus actos (que, muitas vezes, é um parente, ou conhecido). Além de os negar, dá-se o perigo de ele, tendo oportunidade, reforçar as ameaças que faz à vítima. O melhor, é ficar vigilante, em relação ao suspeito, e procurar ajuda profissional o mais depressa possível.
Nota: este texto é um resumo de vários artigos que li sobre o tema, baseados nos seminários que se fazem nas escolas. Um dos artigos foi publicado num jornal da Igreja Católica alemã.
28 de abril de 2011
Já se sabia...
... mas é sempre bom lembrar: crianças felizes são adultos mais satisfeitos.
O artigo é alemão, mas o estudo é inglês, levado a cabo por investigadores da Universidade de Cambridge. 2800 ingleses, nascidos no ano de 1946, foram analisados, regularmente, desde o seu nascimento, até à actualidade. Os que tiveram uma infância feliz, têm 60% menos probabilidades de sofrer de doenças psíquicas. E o que eu considero muito importante, pois é um aspecto, muitas vezes, subestimado: aqueles que, entre os 13 e os 15 anos, tiveram mais incentivos por parte dos seus professores, através de crítica construtiva, também levam uma vida mais agradável. São mais felizes, tanto a nível profissional, como no contacto com a família e os amigos e nos tempos livres.
O artigo é alemão, mas o estudo é inglês, levado a cabo por investigadores da Universidade de Cambridge. 2800 ingleses, nascidos no ano de 1946, foram analisados, regularmente, desde o seu nascimento, até à actualidade. Os que tiveram uma infância feliz, têm 60% menos probabilidades de sofrer de doenças psíquicas. E o que eu considero muito importante, pois é um aspecto, muitas vezes, subestimado: aqueles que, entre os 13 e os 15 anos, tiveram mais incentivos por parte dos seus professores, através de crítica construtiva, também levam uma vida mais agradável. São mais felizes, tanto a nível profissional, como no contacto com a família e os amigos e nos tempos livres.
27 de abril de 2011
Couscous com Cogumelos e Pimentos
Venho, enfim, falar mais pormenorizadamente da minha participação no blogue Comer Animais. Este blogue tem como inspiração o livro homónimo de Jonathan Safran Foer, que conseguiu convencer muitos americanos (até americanos!) dos malefícios do consumo desenfreado de carne, não só para a própria saúde, como para a do planeta. A produção de carne “em série”, além de não proporcionar aos animais uma vida com a dignidade que eles merecem (todos os seres vivos merecem dignidade, pela simples razão de existirem), é muito nociva para o meio ambiente.
Comer Animais pretende sensibilizar-nos para consumirmos menos carne e, se possível, fazermos um dia vegetariano por semana. Cá em casa, seguimos uma política parecida há alguns anos. O consumo de carne é reduzido ao mínimo. Já há muito que a banimos do pequeno-almoço, nada de fiambres, presuntos ou mortadelas; nas nossas refeições a dois, tento não gastar mais de 350 g de carne e fazemos, pelo menos, dois dias por semana livres dela. Confesso que, neste caso, recorremos muito ao peixe, que está também ameaçado e, hoje em dia, quando se fala de hábitos vegetarianos, isso inclui o dispensar de peixe.
E é verdade que se podem fazer pratos deliciosos sem carne, nem peixe. Há tempos, vi, no Comer Animais, uma receita de Couscous e pensei que a podia fazer mais ao meu gosto. O resultado foi Couscous com Cogumelos e Pimentos. Nós, que somos grandes apreciadores de cogumelos, achámos uma delícia, principalmente, devido aos shiitake, que são carnudos, aromáticos e saborosos. Se estiverem interessados na confecção da receita, é só clicar no link.
25 de abril de 2011
Romance Histórico na 100ª Mensagem
Decidi assinalar esta pequena efeméride: a publicação do post nº 100 (para quem não sabe, o blogger chama mensagens aos posts), com um dos meus temas favoritos: o romance histórico. Apesar de recentes edições, continua a ser pouco publicado no nosso país. Para vos mostrar do que falo, convido-vos a ver estas fotografias, tiradas na livraria Thalia, de Stade, a cidade onde vivo. Thalia é uma grande rede alemã de livrarias, o estabelecimento em causa é relativamente pequeno. Stade, com os seus 40 000 habitantes, estará ao nível de algumas capitais de distrito portuguesas. Mas reparem nas quantidades de livros em exposição num único escaparate:
E se eu vos disser que estas fotografias se resumem à oferta de romances históricos? É verdade! Trata-se do escaparate reservado a este tipo de literatura.
A maior parte destes romances são de autores alemães, os traduzidos resumem-se praticamente aos de língua inglesa. Mas há outros que conseguem furar neste mercado, nomeadamente, os de língua castelhana, como Ildefonso Falcones.
Não era bom que também houvesse um ou outro português, pelo meio? Para isso, era necessário que mais autores (conhecidos ou novos) se dedicassem a este tipo de escrita. Uma boa ideia de incentivo seria a criação de um Prémio Literário para o romance histórico, à semelhança do que acontece em Espanha, com o seu Prémio Alfonso X.
Além deste escaparate, há uma secção de prateleiras reservada aos super best-sellers, ou publicações "fresquinhas".
À laia de curiosidade, conto como consegui tirar estas fotografias. Quando fui ter com um dos funcionários, a perguntar se podia usar a minha máquina dentro da livraria, levei logo com uma recusa. Enquanto ponderava se devia insistir, explicando as minhas razões, o livreiro facilitou a tarefa, perguntando por elas. Quando lhe disse que também publicava livros em Portugal e queria usar as fotografias no meu blogue, ele mudou de ideias. Até vieram algumas colegas dele falar comigo, perguntar-me sobre o que eu escrevia. Acabaram todos a ser muito simpáticos, deram-me os parabéns e deixaram-me o caminho livre :-)
E se eu vos disser que estas fotografias se resumem à oferta de romances históricos? É verdade! Trata-se do escaparate reservado a este tipo de literatura.
A maior parte destes romances são de autores alemães, os traduzidos resumem-se praticamente aos de língua inglesa. Mas há outros que conseguem furar neste mercado, nomeadamente, os de língua castelhana, como Ildefonso Falcones.
Não era bom que também houvesse um ou outro português, pelo meio? Para isso, era necessário que mais autores (conhecidos ou novos) se dedicassem a este tipo de escrita. Uma boa ideia de incentivo seria a criação de um Prémio Literário para o romance histórico, à semelhança do que acontece em Espanha, com o seu Prémio Alfonso X.
Além deste escaparate, há uma secção de prateleiras reservada aos super best-sellers, ou publicações "fresquinhas".
À laia de curiosidade, conto como consegui tirar estas fotografias. Quando fui ter com um dos funcionários, a perguntar se podia usar a minha máquina dentro da livraria, levei logo com uma recusa. Enquanto ponderava se devia insistir, explicando as minhas razões, o livreiro facilitou a tarefa, perguntando por elas. Quando lhe disse que também publicava livros em Portugal e queria usar as fotografias no meu blogue, ele mudou de ideias. Até vieram algumas colegas dele falar comigo, perguntar-me sobre o que eu escrevia. Acabaram todos a ser muito simpáticos, deram-me os parabéns e deixaram-me o caminho livre :-)
23 de abril de 2011
22 de abril de 2011
Mensagem de Páscoa
(em estéreo, embora com outro título)
Quando as pessoas se sentem ameaçadas, constroem barreiras à sua volta. Pouco importa se a ameaça é real, ou não, atrás de um muro, sentimo-nos protegidos, mas também importantes e superiores. Foi assim com o muro de Berlim, é assim com o muro dos israelitas e é assim nos condomínios privados, onde certas famílias vivem separadas do mundo que as rodeia.
Há pessoas que gostariam de viver num país rodeado de muros, para afugentarem pessoas vindas de outros países. No seu entender, assim se vivia em bem-estar, sem desemprego, sem crime, numa sociedade mais justa, mais civilizada, quiçá, perfeita.
Quando as coisas correm mal, há que procurar bodes expiatórios, numa tentativa de explicar aquilo que não se compreende. Na Idade Média, quando a peste grassava na Europa Central (no que hoje é a Alemanha e não só), a maioria cristã meteu na cabeça que a culpa era dos judeus, que envenenavam a água das fontes, onde as comunidades iam buscar a sua água. Começaram, assim, as matanças de judeus, organizavam-se milícias, que espalhavam o terror, matando e linchando a torto e a direito.
Hoje em dia, há quem veja nas hordas de imigrantes à procura de uma vida decente na Europa a razão de todos os males e de todas as crises. Não estou a negar que a Europa está a rebentar pelas costuras, que o financiamento estatal aos mais fracos está a soçobrar e que existem conflitos entre religiões. Mas as razões do desemprego, da criminalidade e da crise, em geral, devem ser procuradas na incapacidade dos nossos governantes. Além de uma gritante falta de visão, não exercem o seu posto a pensar no bem comum, mas no proveito próprio. E conflitos religiosos sangrentos existem igualmente entre cristãos, como o prova o caso da Irlanda do Norte.
Construindo um muro à volta do nosso país, travando a imigração, resolveríamos os nossos problemas? Não creio. Portugal depende muito do estrangeiro. Devemos, então, construir um muro à volta da Europa? De toda a Europa? Incluindo a Roménia, Albânia e outros países, onde existem tantos ciganos? Hum… Talvez construir um muro à volta da Europa rica, deixando a pobre de fora… O pior é que, neste caso, Portugal arriscava-se a ficar do “lado errado”!
Os ódios, extremismos e fanatismos que grassam um pouco por todo o lado só provam uma coisa: que nós, a Humanidade, estamos ainda muito longe de encontrar soluções para os nossos problemas e de viver em paz uns com os outros. Mas uma coisa é certa: a resposta não está (não pode estar!) no erigir de barreiras e, sim, no estender de mãos.
Uma Páscoa Feliz para todos!
20 de abril de 2011
Voyeurismo
Através da Vespinha, cheguei ao trabalho do fotógrafo Michael Wolf. E a sua série de fotos Transparent City, embora composta de fotografias tiradas em Chicago, lembrou-me certas vivências nos meus primeiros anos na Alemanha.
Morava em Hamburgo e dava aulas de Português em escolas de línguas. No Inverno, já era escuro quando regressava a casa, de autocarro (aliás, escurece aqui mais cedo do que em Portugal). A viagem demorava uns vinte minutos e passava por bairros habitacionais. Diga-se de passagem que os prédios não são muito altos, Hamburgo não é uma cidade de arranha-céus.
Era interessante constatar que os alemães, principalmente nas grandes cidades, são muito liberais e simples, quanto à decoração das suas janelas: quase nenhumas têm persianas, grande parte delas, nem sequer cortinas. Se as luzes estavam acesas, via-se o interior das casas. Os autocarros andam devagar e têm paragens a cumprir. Eu via-me com tempo para olhar para aqueles compartimentos. Sentia-me muito voyeurista, mas, por outro lado, se as pessoas não se dão ao trabalho de esconder o interior das casas...
O certo é que a consciência não me pesava muito. Ao fim de um certo tempo, percebi porquê. Dei conta que o que mais me interessava não eram as pessoas que estavam lá dentro e o que estavam a fazer e, sim, a decoração: os móveis, os candeeiros, os sofás, as cores etc. Muitos livros, poucos livros; paredes cheias de quadros, paredes nuas; candeeiros e móveis pomposos, decorações simples; plantas grandes, plantas pequenas, sem plantas; secretárias cheias de papéis e livros, secretárias arrumadas; decoração antiga, decoração moderna...
Aquelas viagens eram tudo menos monótonas...
Morava em Hamburgo e dava aulas de Português em escolas de línguas. No Inverno, já era escuro quando regressava a casa, de autocarro (aliás, escurece aqui mais cedo do que em Portugal). A viagem demorava uns vinte minutos e passava por bairros habitacionais. Diga-se de passagem que os prédios não são muito altos, Hamburgo não é uma cidade de arranha-céus.
Era interessante constatar que os alemães, principalmente nas grandes cidades, são muito liberais e simples, quanto à decoração das suas janelas: quase nenhumas têm persianas, grande parte delas, nem sequer cortinas. Se as luzes estavam acesas, via-se o interior das casas. Os autocarros andam devagar e têm paragens a cumprir. Eu via-me com tempo para olhar para aqueles compartimentos. Sentia-me muito voyeurista, mas, por outro lado, se as pessoas não se dão ao trabalho de esconder o interior das casas...
O certo é que a consciência não me pesava muito. Ao fim de um certo tempo, percebi porquê. Dei conta que o que mais me interessava não eram as pessoas que estavam lá dentro e o que estavam a fazer e, sim, a decoração: os móveis, os candeeiros, os sofás, as cores etc. Muitos livros, poucos livros; paredes cheias de quadros, paredes nuas; candeeiros e móveis pomposos, decorações simples; plantas grandes, plantas pequenas, sem plantas; secretárias cheias de papéis e livros, secretárias arrumadas; decoração antiga, decoração moderna...
Aquelas viagens eram tudo menos monótonas...
18 de abril de 2011
Günter Grass e Nina Hagen
O que têm em comum estas duas personalidades alemãs tão díspares: o escritor, de 83 anos, vencedor do Nobel, e a rocker caótica, de 51, que atingiu fama mundial nos anos oitenta? Resposta: a luta contra a energia nuclear!
Os dois participaram numa acção de protesto junto à central atómica alemã de Krümmel, perto de Stade, a cidade onde vivo. Tanto Günter Grass, como Nina Hagen, não deixaram dúvidas quanto à sua posição.
A Alemanha tem tradição neste género de luta e mesmo um governo conservativo, como o de Merkel, pondera alternativas, estuda prazos. Infelizmente, isso não se verifica noutros países. Em França, por exemplo, em que existem mais do dobro das centrais atómicas da Alemanha, a contestação é quase nula, limita-se a meia dúzia de excêntricos, apesar da tragédia de Fukushima.
É isso que desencoraja muitos alemães. Mesmo que conseguissem desactivar todas as centrais do seu país, estariam rodeados de outras e não se livrariam de sofrer com possíveis acidentes. Além disso, se a Alemanha, nesse caso, não conseguisse produzir energia suficiente, acabaria a importá-la de outros países, que a produzem a partir das suas centrais nucleares.
Um problema global, para o qual não se vislumbra solução.
16 de abril de 2011
A importância de D. Châmoa Gomes na vida de D. Afonso Henriques (III)
Com a liberdade que me dá a qualidade de romancista, Afonso Henriques viu, na vinda do cardeal Guido de Vico à Hispânia, uma oportunidade de conseguir autorização para casar com a sua amada Châmoa Gomes, como ele próprio lhe revela:
Depois de se sentar e a encarar, achou-a mais apetecível do que nunca. A camisa de noite desenhava-lhe o contorno das pernas, ligeiramente afastadas. Os braços, agora pousados sobre o regaço, já não cobriam o peito e Afonso adivinhava-lhe os seios bonitos por entre as pregas do tecido. Precisou de um pouco de tempo para se concentrar e encontrar uma maneira de iniciar o seu relato:
- Já deves ter ouvido dizer que receberemos, neste Verão, a visita de um legado do Papa Inocêncio II.
- Sim, as aias comentaram qualquer coisa. Porquê?
- O arcebispo, a quem tu chamas nomes tão feios, até acha que pode levar o cardeal a libertar-me do jugo de meu primo e...
- Vens-me outra vez com o imperador e a homenagem? - interrompeu-o ela, levantando-se. - Arrancas-me da cama, a meio de noite, por causa dessa história?
- Acalma-te, não tornes a acordar os pequenos! Senta-te e ouve-me até ao fim.
Obedeceu-lhe, contrariada. Afonso olhou-a em silêncio durante algum tempo, antes de perguntar:
- E se eu expuser a nossa situação ao cardeal?
Châmoa escancarou as esmeraldas:
- A nossa situação? Que queres dizer com isso?
- Refiro-me a uma conversa a sós com o cardeal, em que lhe explico que a mãe dos meus dois filhos descende da família condal mais poderosa da Galiza. Guido de Vico compreenderá a urgência em legitimar as crianças. E se o conseguir pôr do meu lado, o arcebispo perderá qualquer poder de interferência!
Châmoa fixava-o como se ele fosse um animal exótico. De repente, levantou-se de um salto e exalou, de respiração cortada:
- Afonso, meu amor, mas isso é uma ideia brilhante!
Estava tão encantadora, com as esmeraldas a luzirem de entusiasmo, os cabelos sedosos espalhados pelos ombros, o peito a arfar de excitação. Afonso manteve-se sentado, como se nada daquilo o impressionasse, e acrescentou:
- A ideia só tem a desvantagem de ainda demorar a pôr em prática. Mas, dadas as circunstâncias, arranjarás mais um pouco de paciência, não é verdade?
- Naturalmente.
- Ainda há outra coisa que tens que levar em conta: só falarei com o cardeal, depois de o arcebispo ter resolvido a questão da minha vassalagem. Não pretendo arriscar de maneira nenhuma o sucesso do seu plano.
- Como queiras... Conquanto me prometas que falarás com esse cardeal sobre nós, enquanto ele cá estiver.
Afonso levantou-se, aproximou-se dela e puxou-a para si. Desta vez, ela não ofereceu resistência. Como era bom tornar a senti-la assim abandonada nos seus braços, cheirar-lhe os cabelos sedosos e o pescoço macio. Mas o arcebispo de Braga, seu grande amigo, D. João Peculiar, antecipou-se-lhe, negociando, com o cardeal, o casamento com D. Mafalda (ou Matilde) de Sabóia:
Guido de Vico bocejou:
- Com isto, despachámos os assuntos do dia, não é verdade?
- Bem… - João Peculiar tossicou. – Desejava a vossa colaboração para mais uma questão, eminência.
Guido de Vico passou a mão pela testa, num gesto de impaciência. Mas, em seguida, cruzou as mãos sobre a barriga e anunciou:
- Sou todo ouvidos.
- Trata-se do matrimónio de D. Afonso Henriques.
O cardeal permitiu-se uma expressão de espanto, ao erguer as sobrancelhas.
- Do matrimónio?
- Já ouvistes certamente dizer que ele tenciona casar com a sua barregã.
- Sim. Mas também me chegou aos ouvidos que essa... senhora, que já lhe deu dois varões, tem origem nobre.
- É verdade - admitiu o arcebispo a contragosto. - É filha do antigo conde de Toroño, que, humilhado pelo imperador, acabou por professar no mosteiro beneditino de Pombeiro. E, pelo lado da mãe, é sobrinha do conde de Trava, o nobre mais poderoso da Galiza.
- Ora, caro arcebispo, sei que sois muito cioso dos vossos deveres. Mas nós prelados também não nos devemos afastar demasiado do mundo terreno. Bem sabeis que uniões desse tipo são toleradas pela Igreja e D. Afonso estaria longe de ser o primeiro monarca a fazer um casamento desses. Até vos digo: os dois pequenos deviam ser legitimados o mais depressa possível, a fim de assegurar a descendência do pai.
D. João Peculiar sentiu um calafrio, mas manteve a pose:
- Nada poderia ser mais desvantajoso para el-rei de Portugal do que uma união matrimonial com uma parenta dos Trava. Eu diria até que seria uma verdadeira tragédia!
O arcebispo explicou toda a situação, sem se esquecer de mencionar as razões que sustentariam uma anulação do matrimónio.
Guido de Vico reflectiu, tornou a passar a mão pela testa, enfastiado, e acabou por dizer:
- Não estou em condições de julgar o caso, assim de repente. Terei que confiar no vosso juízo. Se dizeis que a união é inconveniente... pois será. No entanto, continuo a não perceber em que vos possa ser útil.
- Sou de opinião que D. Afonso devia casar com uma donzela, cuja família estivesse livre de quaisquer influências do poder imperial hispânico, a fim de melhor marcar a distância que obterá ao confiar-se à Santa Sé. Vós, eminência, conheceis as famílias mais nobres da Cristandade. Não poderíeis dar uma sugestão que fosse?
- Eu? Bem... talvez. Mas porque haveria D. Afonso, que já não é nenhum jovem imberbe, de casar com uma dama proposta por mim?
- A libertação da suserania do imperador depende de vós, não é verdade? Digamos que, a fim de a merecer, ele teria que fazer certas concessões... Por exemplo, que Roma se reserve o direito de decidir sobre quem deverá ser a futura rainha de Portugal. - Depois de uma pausa: - Peço-vos que considereis este assunto, eminência! Nem imaginais o peso que me tiraríeis dos ombros.
O cardeal acaba por propor a união com a filha do conde Amadeu III de Sabóia.
Em breve, D. Châmoa Gomes se haveria de afastar da vida de D. Afonso Henriques, deixando-lhe, no entanto, dois filhos, que teriam sido criados na corte coimbrã. O mais velho, Fernando Afonso, terá até lutado pelo seu direito de suceder ao pai. Na sua biografia de D. Afonso Henriques, o Prof. Mattoso fala-nos na existência de tensões e conflitos, talvez mesmo conflitos graves, entre o herdeiro D. Sancho e o meio-irmão Fernando Afonso, pois a derrota e a diminuição física de Afonso Henriques no desastre de Badajoz criaram no reino um ambiente de apreensão.
Mas isso só aconteceria quase trinta anos depois do Tratado de Zamora, o próximo assunto de que aqui falarei.
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Cardeal Guido de Vico,
Casamento de D. Afonso Henriques,
Citando Afonso I,
D. Afonso Henriques,
D. Châmoa Gomes,
D. João Peculiar,
D. Mafalda
14 de abril de 2011
A importância de D. Châmoa Gomes na vida de D. Afonso Henriques (II)
Para o meu romance, eu não podia deixar de pegar na ideia de que D. Afonso Henriques terá tentado casar com D. Châmoa Gomes. Estava apaixonado, ela pertencia à alta nobreza galega e, além disso, tinham, pelo menos, um filho: Fernando Afonso. Terão tido um outro, Pedro Afonso, mas há fontes que identificam este nome com um meio-irmão do nosso primeiro rei.
Aos barões portucalenses não agradava tal casamento. As razões são referidas numa conversa entre D. Egas Moniz e D. João Peculiar, arcebispo de Braga:
Fiz, por isso, de D. João Peculiar, arcebispo de Braga e grande amigo e colaborador de D. Afonso Henriques, o opositor mais acirrado do rei nesta questão. E liguei o assunto a mais dois, de elevada importância: o Tratado de Zamora e o casamento do monarca com D. Mafalda de Sabóia. D. João Peculiar terá pensado encontrar a solução do problema na vinda do Cardeal Guido de Vico à Hispânia, em 1143. A intenção do legado papal é participar em dois concílios, um em Valhadolid e outro em Girona, mas também servirá de mediador num tratado a assinar entre Afonso Henriques e o imperador, em que este reconhecerá o título real ao primo. Falo do Tratado de Zamora, assinado a 5 de Outubro de 1143.
Mas o que tem tudo isto a ver com D. Châmoa Gomes e o casamento do rei com D. Mafalda? A ideia foi-me "dada" pelo Prof. Joaquim Veríssimo Serrão, que, na sua História de Portugal (Editorial Verbo), nos diz que poderá ter sido o cardeal Guido de Vico quem advogou, junto de Afonso Henriques, o casamento com a filha do conde Amadeu III de Sabóia. E como se lembraria o cardeal de fazer uma coisa dessas? Talvez o arcebispo de Braga lhe tivesse pedido para o fazer, a fim de acabar, de vez, com o problema chamado D. Châmoa Gomes.
Para apimentar mais o meu romance, Afonso Henriques, que não fazia ideia dos planos do seu amigo arcebispo, terá, ele próprio, visto na vinda do cardeal uma oportunidade de conseguir autorização para o casamento com a sua amada.
Mais no próximo post.
Aos barões portucalenses não agradava tal casamento. As razões são referidas numa conversa entre D. Egas Moniz e D. João Peculiar, arcebispo de Braga:
- Estamos, porém, todos de acordo, em que D. Afonso não deve casar com D. Châmoa Gomes, não é verdade?
- Aqui para nós, eminência, não seria melhor?
- Pelo amor de Deus, D. Egas!
- Rendamo-nos à evidência! Afinal, D. Châmoa é filha e sobrinha de condes. Deu a D. Afonso um menino forte e saudável e o segundo filho vem a caminho... É capaz até de já ter nascido, enquanto aqui conversamos.
- O herdeiro de D. Afonso Henriques não pode ser um sobrinho do conde de Trava! Morresse o soberano nos próximos tempos (Deus nos livre de tal destino), os Trava logo tratariam de manter o pequeno Fernando sob a sua influência. Um casamento destes tem que ser evitado a todo o custo!
- Mas como conseguiremos mudar os intentos do próprio D. Afonso?
O arcebispo reduziu os olhos perspicazes a duas linhas e retorquiu:
- Talvez nem seja tão difícil quanto isso.
- Não? D. Châmoa pode levá-lo a fazer um casamento clandestino. E o que Deus uniu...
- Pode tornar-se a separar!
- Que dizeis, eminência?
- A Igreja tem o poder de anular uniões matrimoniais. Neste caso, haveria até duas razões de peso. Em primeiro lugar, podia-se invocar o incesto...
- Santo Deus!
- O incesto vai até ao sexto grau de parentesco, D. Egas! D. Châmoa é sobrinha de D. Fernão Peres, que viveu numa união de facto com D. Teresa. O que faz dele o padrasto de D. Afonso Henriques. E faz primos dos dois amantes!
O arcebispo fez uma pausa, a fim de beber mais um pouco de água, e prosseguiu:
- Vejamos agora a segunda razão de peso: à morte de D. Paio Soares da Maia, D. Châmoa ingressou no convento beneditino de Vairão, à semelhança de muitas viúvas nobres…
- Oh sim, com as consequências que se conhecem. Viúvas novas e, acima de tudo, bonitas não se deviam precipitar.
- O mais importante é que, por pouco tempo que fosse, D. Châmoa se fez monja. Qualquer casamento lhe está proibido! E não esqueçamos que deixou o mosteiro para se amancebar ao senhor de Tougues. Este motivo, por si só, não seria impeditivo de uma nova união matrimonial. Mas, entre nós, D. Egas, quereremos nós ver uma dama de passado tão pouco recomendável ocupar o trono de Portugal? Porque é de um trono real que se trata! Embora não reconhecido oficialmente, D. Afonso vem-se intitulando rei há mais de um ano.
Egas remeteu-se ao silêncio e, depois da curta pausa, o clérigo acrescentou:
- D. Châmoa que construa as suas armadilhas! Não é ela que me tira o sono. O verdadeiro problema assenta no facto de D. Afonso nem se preocupar em procurar uma noiva apropriada... e o tempo vai passando.
- O nosso rei meteu-se numa bela alhada. Com uma parenta dos Trava! Muitas vezes, penso ser esta uma maldição que a própria mãe lhe lançou.
Fiz, por isso, de D. João Peculiar, arcebispo de Braga e grande amigo e colaborador de D. Afonso Henriques, o opositor mais acirrado do rei nesta questão. E liguei o assunto a mais dois, de elevada importância: o Tratado de Zamora e o casamento do monarca com D. Mafalda de Sabóia. D. João Peculiar terá pensado encontrar a solução do problema na vinda do Cardeal Guido de Vico à Hispânia, em 1143. A intenção do legado papal é participar em dois concílios, um em Valhadolid e outro em Girona, mas também servirá de mediador num tratado a assinar entre Afonso Henriques e o imperador, em que este reconhecerá o título real ao primo. Falo do Tratado de Zamora, assinado a 5 de Outubro de 1143.
Mas o que tem tudo isto a ver com D. Châmoa Gomes e o casamento do rei com D. Mafalda? A ideia foi-me "dada" pelo Prof. Joaquim Veríssimo Serrão, que, na sua História de Portugal (Editorial Verbo), nos diz que poderá ter sido o cardeal Guido de Vico quem advogou, junto de Afonso Henriques, o casamento com a filha do conde Amadeu III de Sabóia. E como se lembraria o cardeal de fazer uma coisa dessas? Talvez o arcebispo de Braga lhe tivesse pedido para o fazer, a fim de acabar, de vez, com o problema chamado D. Châmoa Gomes.
Para apimentar mais o meu romance, Afonso Henriques, que não fazia ideia dos planos do seu amigo arcebispo, terá, ele próprio, visto na vinda do cardeal uma oportunidade de conseguir autorização para o casamento com a sua amada.
Mais no próximo post.
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Tratado de Zamora
12 de abril de 2011
A importância de D. Châmoa Gomes na vida de D. Afonso Henriques (I)
O aspecto menos conhecido da vida de D. Afonso Henriques é o amoroso, sabe-se apenas que casou com D. Mafalda (ou Matilde) de Sabóia. O que não se costuma referir é que ele já ia perto dos quarenta e que D. Mafalda faleceu doze anos depois, na sequência do nascimento da infanta D. Sancha, o sétimo filho do casal.
O primeiro filho ilegítimo do nosso primeiro rei nasce por volta de 1139/40, ao tempo da Batalha de Ourique e da sua aclamação de rei. Antes disso, não se lhe conhecem amantes, o que já intrigou alguns historiadores. Há, aliás, uma versão interessante, seguida, entre outros, pelo Dr. Paulo Loução, Director da editora Ésquilo: D. Afonso Henriques ter-se-ia, muito jovem, ligado aos Templários, os cavaleiros monges obrigados ao voto da castidade. A Ordem do Templo desempenhou um papel muito importante, tanto ao tempo do Condado Portucalense, como na formação do reino de Portugal. E é curioso verificar que, pouco depois da Batalha de São Mamede, o jovem Afonso Henriques, ao confirmar a doação do Castelo de Soure aos Templários, declarou-se, ele próprio irmão da Ordem do Templo. Mas queria ele dizer que pertencia à Ordem, ou, apenas, que se sentia muito ligado a ela?
De qualquer maneira, quando ia pelos vinte e oito anos, Afonso Henriques ter-se-á perdido de amores por D. Châmoa, ou Flâmula, (estes nomes medievais...) Gomes, pertencente à alta nobreza galega. Possuía, no entanto, dada a sua posição de nobre e para os padrões da época, um passado bastante atribulado. D. Châmoa Gomes casara, muito nova (talvez com catorze ou quinze anos), com D. Paio Soares da Maia, dando à luz três filhos, mas logo enviuvando. Ingressou no mosteiro de Vairão, o que não a impediu de se envolver com D. Mem Rodrigues de Tougues, engravidando e deixando o convento (coisa, aliás, proibida). Porém, o fidalgo faleceu ainda antes do filho nascer e, só depois desta infelicidade, ela se envolveu com D. Afonso Henriques.
Como se vê, um enredo digno de romance, de série televisiva, de filme... Quem diria que a vida de Afonso Henriques englobava tais peripécias? Os verdadeiros problemas, porém, começaram quando esta senhora se cruzou com ele. O Prof. Freitas do Amaral, na sua biografia de Afonso Henriques, diz-nos:
...não foi apenas uma ligação amorosa de que nasceu um filho. Foi muito mais do que isso: D. Afonso Henriques - no auge da sua pujança pessoal e da sua trajectória militar e política - conhece uma mulher, de quem se enamora intensamente, e que será a grande paixão da sua vida (...) é uma rapariga da melhor nobreza galega, jovem e bonita por certo, de seu nome Flâmula Gomes, que é nem mais nem menos do que uma sobrinha de Fernão Peres de Trava - o amante de D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques (...) Com ela terá querido, empenhadamente, casar.
Se D. Afonso Henriques tencionava realmente casar com D. Châmoa Gomes, tinha três grandes obstáculos pela frente:
1º Passado pouco recomendável para esposa de um monarca.
2º Sobrinha de Fernão Peres de Trava, o que queria dizer que o sucessor do nosso primeiro rei pertenceria, neste caso, à família galega que tantas dores de cabeça dera aos barões portucalenses.
3º D. Châmoa fizera-se monja em Vairão, depois de enviuvar, pelo que o casamento lhe estava proibido (segundo as leis da Igreja, uma vez freira, ela não podia deixar de o ser).
Sabemos que não casaram, ou seja, D. Afonso Henriques, que tanto lutava pelos seus objectivos e que estava habituado a vencer os seus combates, terá perdido esta "batalha". Darei conta disso no próximo post.
José Filipe Photo |
O primeiro filho ilegítimo do nosso primeiro rei nasce por volta de 1139/40, ao tempo da Batalha de Ourique e da sua aclamação de rei. Antes disso, não se lhe conhecem amantes, o que já intrigou alguns historiadores. Há, aliás, uma versão interessante, seguida, entre outros, pelo Dr. Paulo Loução, Director da editora Ésquilo: D. Afonso Henriques ter-se-ia, muito jovem, ligado aos Templários, os cavaleiros monges obrigados ao voto da castidade. A Ordem do Templo desempenhou um papel muito importante, tanto ao tempo do Condado Portucalense, como na formação do reino de Portugal. E é curioso verificar que, pouco depois da Batalha de São Mamede, o jovem Afonso Henriques, ao confirmar a doação do Castelo de Soure aos Templários, declarou-se, ele próprio irmão da Ordem do Templo. Mas queria ele dizer que pertencia à Ordem, ou, apenas, que se sentia muito ligado a ela?
Cavaleiro Templário |
De qualquer maneira, quando ia pelos vinte e oito anos, Afonso Henriques ter-se-á perdido de amores por D. Châmoa, ou Flâmula, (estes nomes medievais...) Gomes, pertencente à alta nobreza galega. Possuía, no entanto, dada a sua posição de nobre e para os padrões da época, um passado bastante atribulado. D. Châmoa Gomes casara, muito nova (talvez com catorze ou quinze anos), com D. Paio Soares da Maia, dando à luz três filhos, mas logo enviuvando. Ingressou no mosteiro de Vairão, o que não a impediu de se envolver com D. Mem Rodrigues de Tougues, engravidando e deixando o convento (coisa, aliás, proibida). Porém, o fidalgo faleceu ainda antes do filho nascer e, só depois desta infelicidade, ela se envolveu com D. Afonso Henriques.
Como se vê, um enredo digno de romance, de série televisiva, de filme... Quem diria que a vida de Afonso Henriques englobava tais peripécias? Os verdadeiros problemas, porém, começaram quando esta senhora se cruzou com ele. O Prof. Freitas do Amaral, na sua biografia de Afonso Henriques, diz-nos:
...não foi apenas uma ligação amorosa de que nasceu um filho. Foi muito mais do que isso: D. Afonso Henriques - no auge da sua pujança pessoal e da sua trajectória militar e política - conhece uma mulher, de quem se enamora intensamente, e que será a grande paixão da sua vida (...) é uma rapariga da melhor nobreza galega, jovem e bonita por certo, de seu nome Flâmula Gomes, que é nem mais nem menos do que uma sobrinha de Fernão Peres de Trava - o amante de D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques (...) Com ela terá querido, empenhadamente, casar.
Se D. Afonso Henriques tencionava realmente casar com D. Châmoa Gomes, tinha três grandes obstáculos pela frente:
1º Passado pouco recomendável para esposa de um monarca.
2º Sobrinha de Fernão Peres de Trava, o que queria dizer que o sucessor do nosso primeiro rei pertenceria, neste caso, à família galega que tantas dores de cabeça dera aos barões portucalenses.
3º D. Châmoa fizera-se monja em Vairão, depois de enviuvar, pelo que o casamento lhe estava proibido (segundo as leis da Igreja, uma vez freira, ela não podia deixar de o ser).
Sabemos que não casaram, ou seja, D. Afonso Henriques, que tanto lutava pelos seus objectivos e que estava habituado a vencer os seus combates, terá perdido esta "batalha". Darei conta disso no próximo post.
10 de abril de 2011
O Templário d'el-Rei
O ponto forte deste romance, do historiador António Balcão Vicente, é a caracterização da Idade Média, mais precisamente, o final do século XIII. O autor é conhecedor dos ritos e da filosofia dos Templários, dá-nos uma excelente descrição de um séquito real e dos festejos do Espírito Santo e refere a vida eremítica, tão apreciada naquele tempo, além de nos pôr a par de diversos usos e costumes, como as ervas usadas nas diversas doenças.
A competência de António Balcão Vicente é indiscutível, mas confesso que esperava mais de um romance. A ideia inicial é excelente: uma mulher morre ao dar à luz uma menina, clandestinamente, pois o pai é um cavaleiro Templário aragonês, obrigado ao voto da castidade. A recém-nascida é posta aos cuidados, primeiro, de um casal sem filhos e, com apenas um ano, entregue a um convento. O leitor fica na expectativa: que futuro para essa menina? Com que conflitos se debaterá? Saberá, algum dia, quem são os seus pais? O enredo, porém, centra-se nas reflexões do Templário e nas conversas que ele tem com o seu escudeiro, a par das descrições das suas viagens e das outras já mencionadas. O leitor torna a ganhar uma certa esperança, quando a menina, alguns anos mais tarde, trava amizade com Isabel de Aragão, também criança, essa mesma, que há-de casar com D. Dinis. Mas também essa amizade só nos é referida, não desenvolvida.
Pouco depois do nascimento da filha, o Templário entra ao serviço de Pedro II de Aragão e acaba por vir para Portugal, no séquito de D. Isabel. Também a sua filha faz parte dele, um segredo que o cavaleiro guarda no seu peito. Nem a própria, nem ninguém, o vem a saber. Não há acontecimentos inesperados, declarações explosivas, escândalos, ou tragédias, ou seja, tudo aquilo que faz um romance interessante.
Não é, por isso, leitura de entretenimento, o ritmo é lento, por vezes, mesmo exaustivo. Adequado para quem se interesse muito pela época medieval, os Templários, a vida eremítica e a temática do Espírito Santo.
8 de abril de 2011
Afonso Henriques de Outra Maneira
Sendo apreciadora de humor e apaixonada pela Idade Média, gostei muito deste post publicado por JoZe nas suas Crónicas de um Matemático exilado do Mundo (o blogue que escolhi para 2711 da semana): uma conversa com Afonso Henriques, sobre o Portugal actual (embora seja bom acrescentar que foi escrito em Janeiro passado, por altura das eleições presidenciais), passando por Saramago e Cristo. Divertido e inteligente:
Suponho que por causa do momento crítico que a nação atravessa, detive-me mais tempo do que o normal em frente à estátua do Fundador. Mais tempo do que o normal e, agora constato, mais tempo do que o recomendável. Uma série de pensamentos profundos e contraditórios (muitos deles inconfessáveis) passaram-me pela memória nesses instantes. A imprudência foi paga na noite seguinte com um sonho estranho: eu morria e, acabado de chegar ao paraíso, dava de caras com Afonso Henriques. Encontrava-o vestido a preceito, não faltando elmo, espada nem escudo. Indumentária um pouco estranha para quem se encontra no paraíso, mas como é bem sabido, os sonhos são criações da mente com estranhas associações de ideias.
Vendo chegar um português (tenho uma vaga ideia de uma etiquetagem à entrada que me deixou com uma bandeirinha portuguesa na lapela), Afonso Henriques apressou-se em minha direção, ávido de notícias sobre Portugal. Mostrei -lhe a minha estranheza pela falta de portugueses que lhe tivessem levado notícias recentes, ao que ele me respondeu:
— Estou na ala dos ilustres. Ultimamente não aparecem por cá muito portugueses. Há uns meses conversei algumas horas com o José Saramago, mas logo ele foi chamado para o grupo dos mais íntimos do Filho.
— Íntimos do Filho?! Jesus?
— Sim, o Todo-Poderoso.
— Não é o Pai quem manda?
— Não, o Pai aposentou-se há séculos, cansado de enviar sinais sobre a terra e ver o seu povo continuar tão pecador. Cedeu a liderança ao Filho, que a exerce de maneira bastante mais suave, deixando ao cuidado do povo a interpretação dos muitos sinais já enviados ao longo dos tempos.
— Ah, interessante sinal de maturidade conferido ao povo. Mas voltando a Saramago...
— Sim...
— Espanta-me que esteja aqui. Ele era profunda e convictamente comunista.
— Pois, por isso mesmo, o Filho adora comunistas. Diz que são os que melhor interpretaram a mensagem que deixou na terra. Uma mensagem de partilha e igualdade acima de tudo. Além do mais, adorou um livro escrito por Saramago, por fazer jus ao seu lado humano. Ao que consta, estava farto que lhe reconhecessem apenas o lado divino.
— A sério?
— Sim.Veja bem: dignar-se descer à terra, tornar-se homem entre os homens, aceitar ser sacrificado e, depois, não lhe valorizarem o lado humano é indecente, não acha?
— Sim, de facto... .
— Mas conte-me, conte-me como anda o país.
— Bom, já deve saber que nos tornamos numa república há cerca de um século.
— Sim, sim, essas coisas eu sei, quero notícias recentes.
— Então indo direto ao assunto: o país encontra-se numa profunda crise financeira e debate-se com sérios problemas de subsistência.
— Ai sim? A república democrática não consegue passar incólume a esse tipo de problemas?
A pergunta, em tom irónico, vinda de alguém seguramente pró monárquico absolutista, causou-me alguma irritação. Contrapus:
— No fundo, no fundo a culpa de tudo isto é sua.
— Minha?!
— Sim, não foi o senhor quem fundou o país?
— Ah... sob esse ponto de vista. Mas, meu caro, em oito séculos podiam ter avançado muito.
— E tentamos. Chegamos a dominar meio mundo. Mas o império desmoronou-se e, no final, pouco ficou. Continuamos com a velha sina de povo relegado ao abandono pela Europa.
— E por que não se aliam a essa Europa?
— Já nos aliamos...
— E então?
— Nada. Uns fundos comunitários, umas estradas e uma série de maus vícios de novo-riquismo foi o que restou. Neste momento estamos completamente à mercê dos mercados.
— Mercados?! Fruta, legumes, carne...?
— Não, não!... Mercados financeiros. Especuladores...
— Mas não é presidente Cavaco Silva, um grande especialista na área?
— Hum, vejo que anda muito bem informado.
— É, sobre esse Cavaco falou-me bastante o Saramago.
— Pois, imagino...
— E que tem feito Cavaco?
— Neste momento anda em campanha eleitoral para a reeleição. Mas nos cinco anos de mandato exerceu uma magistratura de influência.
— Exerceu o quê?!
— Uma magistratura de influência.
— Que é isso?
— Ao certo não sei, mas a julgar pelo que tem vindo a público, creio referir-se à influência que Cavaco tem exercido para salvar a pele de uma quadrilha de amigos encapuçados de banqueiros que, com um gigantesco roubo, ajudaram a aumentar o buraco financeiro do país.
— Então vai ser complicado ser reeleito...
— Não sei, ele já assegurou que no próximo mandato exercerá uma magistratura ativa.
— Ai sim? Deve querer dizer que da próxima será ele o ladrão...
Quadrilha, roubo, ladrão... esses termos associados ao representante das mais altas instâncias da nação causaram-me um grande mal-estar que, de imediato, me fez despertar desse sonho tão incomum. É bom salientar que tudo isto se passou ao nível do subconsciente. De forma consciente, eu jamais ousaria dizer (ou até pensar) essas coisas sobre o presidente e seus amigos. Aliás, repare-se na megalomania do meu subconsciente, que não só ousa entrar no céu, como ainda se guinda à ala dos ilustres. Devo confessar que não é nada fácil conviver com um subconsciente como o meu...
6 de abril de 2011
Opinião D. Dinis (IV)
Tenho o prazer de comunicar que a leitura do meu romance sobre o D. Dinis tornou a agradar, desta vez, ao Manuel Cardoso, do blogue Dos Meus Livros. Prezo muito esta opinião, porque o Manuel Cardoso revela conhecimento da época:
Estávamos numa época de charneira no plano cultural: o advento da arte gótica na Península, a escola de tradutores de Toledo que divulgava a cultura clássica, a promoção das línguas nacionais, a afirmação das Universidades, etc, construíram um ambiente cultural que, num contexto de laicização crescente da cultura, anunciavam uma espécie de pré-renascimento.
É interessante esta ideia de pré-renascimento, pois o século XIV talvez tenha sido o último verdadeiramente medieval, o XV anuncia já a mutação para o Renascimento.
Mas vamos à opinião, propriamente dita:
Com grande cuidado na fidelidade à verdade histórica, a autora presenteia-nos com um romance histórico de rara qualidade.
A sua política (de D. Dinis) foi, de facto, brilhante por ter sido “revolucionária” em três planos: político, económico e social (...) Mas a parte final do seu reinado acabou por ser problemática (...) Dinis teria grandes desafios a enfrentar (...), que Cristina Torrão narra com grande envolvência dramática, conferindo a este livro uma riqueza literária impressionante.
O encanto da Rainha Santa, a coragem de Dinis e a tremenda teia de interesses que se gerava nos reinos ibéricos são aspectos que Cristina Torrão desenvolve com mestria, tornando este livro indispensável a quem aprecia a literatura de qualidade. Uma surpresa muito agradável mas também um verdadeiro manual de história em forma de romance.
O contraste com o carácter rígido mas também mundano de Dinis dá à descrição da Raínha Santa um encanto especialíssmo. Chega a ser comovedora a forma como Cristina Torrão nos apresenta esta grande Raínha.
É gratificante ver o nosso trabalho reconhecido: dois anos a fazer pesquisas, a organizá-las e a envolvê-las num enredo, que se quer, ao mesmo tempo, interessante e lógico, pondo em relevo os comportamentos humanos. Sendo uma estudiosa de psicologia, dou uma importância fulcral aos motivos que levam as minhas personagens a agir de determinada maneira, um aspecto que me é bem mais importante do que executar acrobacias linguísticas. Pretendo criar personagens de carne e osso e, não, meros figurantes, que se limitam a agir conforme as circunstâncias.
Atendendo às palavras do Manuel Cardoso, penso que o consegui em pleno :-)
(Opinião igualmente publicada em Destante).
Estávamos numa época de charneira no plano cultural: o advento da arte gótica na Península, a escola de tradutores de Toledo que divulgava a cultura clássica, a promoção das línguas nacionais, a afirmação das Universidades, etc, construíram um ambiente cultural que, num contexto de laicização crescente da cultura, anunciavam uma espécie de pré-renascimento.
É interessante esta ideia de pré-renascimento, pois o século XIV talvez tenha sido o último verdadeiramente medieval, o XV anuncia já a mutação para o Renascimento.
Mas vamos à opinião, propriamente dita:
Com grande cuidado na fidelidade à verdade histórica, a autora presenteia-nos com um romance histórico de rara qualidade.
A sua política (de D. Dinis) foi, de facto, brilhante por ter sido “revolucionária” em três planos: político, económico e social (...) Mas a parte final do seu reinado acabou por ser problemática (...) Dinis teria grandes desafios a enfrentar (...), que Cristina Torrão narra com grande envolvência dramática, conferindo a este livro uma riqueza literária impressionante.
O encanto da Rainha Santa, a coragem de Dinis e a tremenda teia de interesses que se gerava nos reinos ibéricos são aspectos que Cristina Torrão desenvolve com mestria, tornando este livro indispensável a quem aprecia a literatura de qualidade. Uma surpresa muito agradável mas também um verdadeiro manual de história em forma de romance.
O contraste com o carácter rígido mas também mundano de Dinis dá à descrição da Raínha Santa um encanto especialíssmo. Chega a ser comovedora a forma como Cristina Torrão nos apresenta esta grande Raínha.
É gratificante ver o nosso trabalho reconhecido: dois anos a fazer pesquisas, a organizá-las e a envolvê-las num enredo, que se quer, ao mesmo tempo, interessante e lógico, pondo em relevo os comportamentos humanos. Sendo uma estudiosa de psicologia, dou uma importância fulcral aos motivos que levam as minhas personagens a agir de determinada maneira, um aspecto que me é bem mais importante do que executar acrobacias linguísticas. Pretendo criar personagens de carne e osso e, não, meros figurantes, que se limitam a agir conforme as circunstâncias.
Atendendo às palavras do Manuel Cardoso, penso que o consegui em pleno :-)
(Opinião igualmente publicada em Destante).
4 de abril de 2011
Quem é o verdadeiro escritor?
O Horas Extraordinárias, da editora Maria do Rosário Pedreira, grupo Leya, é, com razão, um dos blogues mais conhecidos e elogiados da blogosfera. Também eu gosto de o ler, todos os dias, mas intrigou-me o post publicado, precisamente, na data simbólica de 1 de Abril. Não é tanto o seu conteúdo que me incomoda, mas a maneira como é expressado.
Intitulado "Ser Escritor", inicia assim: Não se é escritor porque se quer, mas porque se pode. Considero esta frase infeliz, na sua ambiguidade. Eu diria antes: não é escritor só quem pode, mas quem quer; e muito! Todos sabemos que o talento não chega, é preciso disciplina e, acima de tudo, perseverança. Dizer que não se é escritor porque se quer não faz, para mim, qualquer sentido, porque, se não o quisermos ser, não o seremos, de certeza! Como tudo na vida, aquilo que se quer alcançar, tem de se querer muito.
A frase até pode dar azo a interpretações menos honestas. Não se é escritor porque se quer, isto é, porque se vive com essa vocação e esse desejo, mas porque se pode, ou seja, quem tem contactos, cunhas, é famoso, tem pais famosos, ou dinheiro. Eu sei que não foi isso que a Maria do Rosário Pedreira quis dizer, mas, por isso mesmo, a frase é infeliz.
Mais à frente, lê-se: ... infelizmente, nem toda a gente que aprende a juntar as letras sabe ler. Os verdadeiros leitores, como os verdadeiros escritores, serão sempre uma minoria. Deixemos, para já, os escritores de lado e concentremo-nos nos leitores. Então, passa-se assim um atestado de burrice e incapacidade à maioria da população que compra livros?! Talvez compre livros de que a Maria do Rosário Pedreira não gosta, ou que considera de qualidade inferior. Mas, daí a dizer que essas pessoas não sabem ler?! Entre amigos, ou num meio literário em que as opiniões coincidem, dizem-se coisas destas. Mas expô-las ao público, indicia, a meu ver, prepotência.
Conceitos como verdadeiro escritor, verdadeiro leitor e literatura séria não são estanques e deviam ser usados com cuidado. Os comentadores do post discutem o facto de muito poucos escritores poderem viver daquilo que editam. Mas, se há nomes que não deixam margem para dúvidas, como Saramago, Gonçalo M. Tavares e António Lobo Antunes, que dizer de José Rodrigues dos Santos, ou, a nível internacional, Dan Brown e Stephenie Meyer? Todos eles podem viver bem daquilo que editam. Mas são eles verdadeiros escritores? Escrevem eles literatura séria?
Um comentador anónimo diz algo, a meu ver, muito pertinente: Todavia, há que dizer que a literatura que tem como único propósito a diversão e o entretenimento também merece respeito. Aliás, se calhar até é ela que paga o salário da MRP no grande grupo económico em que trabalha. E no entanto, a Maria do Rosário Pedreira diz, no seu post: a literatura séria está, com o tempo, condenada a ocupar uma pequena parcela das prateleiras das livrarias, onde hão-de proliferar muitos outros géneros de mais fácil assimilação. A verdade, que temos de aceitar e com a qual temos de viver é a de que os livros não passam de um negócio! As editoras preferem seguir as regras do mercado, em vez de apostar na qualidade. Só assim conseguem sobreviver e pagar salários.A autora do Horas Extraordinárias devia estar bem dentro deste assunto!
Embora todos os comentários sejam interessantes (o post acaba por ter essa virtude de despoletar a discussão), não resisto a transcrever o de um outro anónimo (ou será o mesmo?):
A velha polémica entre a literatura experimental vs. "uma boa história". Já me fartei do Bolaño, mas continuo a gostar do John Grisham. Gosto dos clássicos russos, mas nunca consegui ler o "Ulisses" do Joyce. Gostei muito do "Monte dos Vendavais" da Emily Brontë, mas detestei "Retrato de Uma Senhora" do Henry James. Adorei "Kane e Abel" do Jeffrey Archer, nas não consigo terminar "Os Detectives Selvagens"... Li quase tudo de Fiódor Dostoiévski, mas não suporto a imitação "tuga" do JRS e, no entanto, gosto de Dan Brown. Que leitor serei eu?
Ou seja, muitas vezes, a "qualidade", a "verdadeira literatura" é uma questão de gosto. E eu posso gostar de Saramago, Dan Brown e Stephenie Meyer ao mesmo tempo. Insisto na minha opinião, que já aqui expressei: mais vale ler livros "maus", do que não ler, aprende-se, pelo menos, a escrever sem erros.
E, respondendo à pergunta que serviu de título a este meu post, lembro o conceito de Sol Stein: escritores não são só aqueles que já publicaram livros, mas todos aqueles que não concebem a sua vida sem escrever. Ou seja, quem ama a escrita, é escritor. E quem ama os seus livros, sejam eles quais forem, é um verdadeiro leitor.
Intitulado "Ser Escritor", inicia assim: Não se é escritor porque se quer, mas porque se pode. Considero esta frase infeliz, na sua ambiguidade. Eu diria antes: não é escritor só quem pode, mas quem quer; e muito! Todos sabemos que o talento não chega, é preciso disciplina e, acima de tudo, perseverança. Dizer que não se é escritor porque se quer não faz, para mim, qualquer sentido, porque, se não o quisermos ser, não o seremos, de certeza! Como tudo na vida, aquilo que se quer alcançar, tem de se querer muito.
A frase até pode dar azo a interpretações menos honestas. Não se é escritor porque se quer, isto é, porque se vive com essa vocação e esse desejo, mas porque se pode, ou seja, quem tem contactos, cunhas, é famoso, tem pais famosos, ou dinheiro. Eu sei que não foi isso que a Maria do Rosário Pedreira quis dizer, mas, por isso mesmo, a frase é infeliz.
Daqui |
Mais à frente, lê-se: ... infelizmente, nem toda a gente que aprende a juntar as letras sabe ler. Os verdadeiros leitores, como os verdadeiros escritores, serão sempre uma minoria. Deixemos, para já, os escritores de lado e concentremo-nos nos leitores. Então, passa-se assim um atestado de burrice e incapacidade à maioria da população que compra livros?! Talvez compre livros de que a Maria do Rosário Pedreira não gosta, ou que considera de qualidade inferior. Mas, daí a dizer que essas pessoas não sabem ler?! Entre amigos, ou num meio literário em que as opiniões coincidem, dizem-se coisas destas. Mas expô-las ao público, indicia, a meu ver, prepotência.
Conceitos como verdadeiro escritor, verdadeiro leitor e literatura séria não são estanques e deviam ser usados com cuidado. Os comentadores do post discutem o facto de muito poucos escritores poderem viver daquilo que editam. Mas, se há nomes que não deixam margem para dúvidas, como Saramago, Gonçalo M. Tavares e António Lobo Antunes, que dizer de José Rodrigues dos Santos, ou, a nível internacional, Dan Brown e Stephenie Meyer? Todos eles podem viver bem daquilo que editam. Mas são eles verdadeiros escritores? Escrevem eles literatura séria?
Um comentador anónimo diz algo, a meu ver, muito pertinente: Todavia, há que dizer que a literatura que tem como único propósito a diversão e o entretenimento também merece respeito. Aliás, se calhar até é ela que paga o salário da MRP no grande grupo económico em que trabalha. E no entanto, a Maria do Rosário Pedreira diz, no seu post: a literatura séria está, com o tempo, condenada a ocupar uma pequena parcela das prateleiras das livrarias, onde hão-de proliferar muitos outros géneros de mais fácil assimilação. A verdade, que temos de aceitar e com a qual temos de viver é a de que os livros não passam de um negócio! As editoras preferem seguir as regras do mercado, em vez de apostar na qualidade. Só assim conseguem sobreviver e pagar salários.A autora do Horas Extraordinárias devia estar bem dentro deste assunto!
Daqui |
Embora todos os comentários sejam interessantes (o post acaba por ter essa virtude de despoletar a discussão), não resisto a transcrever o de um outro anónimo (ou será o mesmo?):
A velha polémica entre a literatura experimental vs. "uma boa história". Já me fartei do Bolaño, mas continuo a gostar do John Grisham. Gosto dos clássicos russos, mas nunca consegui ler o "Ulisses" do Joyce. Gostei muito do "Monte dos Vendavais" da Emily Brontë, mas detestei "Retrato de Uma Senhora" do Henry James. Adorei "Kane e Abel" do Jeffrey Archer, nas não consigo terminar "Os Detectives Selvagens"... Li quase tudo de Fiódor Dostoiévski, mas não suporto a imitação "tuga" do JRS e, no entanto, gosto de Dan Brown. Que leitor serei eu?
Ou seja, muitas vezes, a "qualidade", a "verdadeira literatura" é uma questão de gosto. E eu posso gostar de Saramago, Dan Brown e Stephenie Meyer ao mesmo tempo. Insisto na minha opinião, que já aqui expressei: mais vale ler livros "maus", do que não ler, aprende-se, pelo menos, a escrever sem erros.
E, respondendo à pergunta que serviu de título a este meu post, lembro o conceito de Sol Stein: escritores não são só aqueles que já publicaram livros, mas todos aqueles que não concebem a sua vida sem escrever. Ou seja, quem ama a escrita, é escritor. E quem ama os seus livros, sejam eles quais forem, é um verdadeiro leitor.
2 de abril de 2011
A Nossa Criança Interior II
Entrar em contacto com a nossa Criança Interior é um exercício que nos ajuda a estarmos em harmonia com nós mesmos, a vencer os nossos medos e a tomarmos as decisões certas. Mencionei o livro da americana Erika J. Chopich e hoje falo do outro, Das innere Kind umarmen (Abraçar a Criança Interior), da alemã Kim-Anne Jannes (Knaur 2008), que nos diz coisas como (tradução minha):
"Devemos tratar de nós próprios como, em criança, desejaríamos que os nossos pais nos tratassem."
“Se adopta uma atitude negativa em relação a si próprio e imagina, de princípio, uma conclusão desfavorável dos seus projectos, então, as hipóteses de sucesso são realmente mínimas. Pensamentos positivos têm mais ou menos o mesmo efeito, como se os seus pais lhe dissessem: Tu consegues!, Tu podes!, Eu acredito nas tuas capacidades!, Amo-te, tal e qual como tu és!
Não é uma sensação formidável? Consegue sentir a energia que paira por trás destas afirmações? Com confirmações destas consegue-se viver e progredir melhor. Por isso, confirme-se a si próprio com a força dos pensamentos, independentemente do facto de os seus pais o fazerem, ou não.”
Embora a maioria dos pais se esforce por dar uma boa educação aos filhos, em vez de palavras positivas, muitas vezes dizem algo como: seu palerma, seu teimoso, seu burro, seu desajeitado, nunca aprendes. Bem, o dia-a-dia é cansativo e ninguém é de ferro. Mas deviam-se evitar este tipo de expressões, porque as crianças acreditam nos pais (mesmo que o não admitam) e interiorizam o que eles dizem. E lá se vai a auto-estima, tão importante, para se ser feliz.
No post anterior, citava José Saramago, aqui, cito mais uma figura da literatura internacional: Antoine de Saint-Exupéry, na sua dedicatória do Principezinho (destaques meus):
«A Léon Werth.
Peço perdão às crianças por dedicar este livro a uma pessoa grande. Tenho uma desculpa séria: essa pessoa grande é o melhor amigo que tenho no mundo. Tenho outra desculpa: essa pessoa grande é capaz de compreender tudo, mesmo os livros para crianças. E tenho uma terceira desculpa: essa pessoa grande mora em França, onde passa fome e frio. Bem precisa de ser consolada. Se todas estas desculpas não chegarem, gostava de dedicar este livro à criança que essa pessoa grande já foi. Todas as pessoas grandes já foram crianças. (Mas poucas se lembram disso.) Corrijo, a minha dedicatória:
A Léon Werth,
Quando ele era Rapazinho.»
(Um agradecimento ao blogue da livraria Pó dos Livros que me chamou a atenção para esta dedicatória).
No post anterior, citava José Saramago, aqui, cito mais uma figura da literatura internacional: Antoine de Saint-Exupéry, na sua dedicatória do Principezinho (destaques meus):
«A Léon Werth.
Peço perdão às crianças por dedicar este livro a uma pessoa grande. Tenho uma desculpa séria: essa pessoa grande é o melhor amigo que tenho no mundo. Tenho outra desculpa: essa pessoa grande é capaz de compreender tudo, mesmo os livros para crianças. E tenho uma terceira desculpa: essa pessoa grande mora em França, onde passa fome e frio. Bem precisa de ser consolada. Se todas estas desculpas não chegarem, gostava de dedicar este livro à criança que essa pessoa grande já foi. Todas as pessoas grandes já foram crianças. (Mas poucas se lembram disso.) Corrijo, a minha dedicatória:
A Léon Werth,
Quando ele era Rapazinho.»
(Um agradecimento ao blogue da livraria Pó dos Livros que me chamou a atenção para esta dedicatória).
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