Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

30 de dezembro de 2015

2016 - Ano de Dom Dinis



Pormenor da estátua em Coimbra

Dedicarei o ano de 2016 a Dom Dinis (por acaso, o seu 755º aniversário), aproveitando o facto de o Rei Lavrador ser tema da próxima Viagem Medieval em Santa Maria da Feira. Apesar de todos os posts também serem publicados aqui no Andanças, criei um blogue apenas para este meu projeto, como já tenho anunciado na barra lateral. E, já agora, informo que foi criada recentemente uma página no Facebook, a fim de alertar as autoridades para o péssimo estado em que se encontra o  túmulo do rei Poeta em Odivelas.

Dom Dinis é conhecido por ter sido poeta, fundador da Universidade portuguesa (aliás em Lisboa e não em Coimbra) e mandado plantar o pinhal de Leiria, o motivo por que mereceu o cognome de Lavrador.

Na verdade, o sexto rei de Portugal provavelmente não mandou plantar apenas aquele pinhal, mas vários. Na época medieval, gastavam-se quantidades exorbitantes de madeira e o desaparecimento das florestas era já um problema. O pinheiro bravo é das árvores que mais rapidamente cresce e, por isso, Dom Dinis teria optado pela sua plantação em vários locais. Além disso, foi um grande impulsionador de todo o tipo de agricultura.

No entanto, o cognome de Lavrador não lhe faz justiça, pois Dom Dinis foi igualmente um grande impulsionador do comércio, da pesca, da exploração mineira e um extraordinário legislador, além de que expandiu a fronteira portuguesa para leste do Guadiana, conseguindo ainda a inclusão da região de Ribacoa no reino. A fundação da Universidade e a poesia não foram igualmente os seus únicos contributos culturais. Ao decidir adotar o português como língua oficial dos documentos régios (que até à altura eram redigidos em latim, ou em galaico-português), Dom Dinis contribuiu para a uniformização do idioma, diminuindo as diferenças regionais, pois, naquela época, em que abundavam os dialetos, dificilmente um alentejano entenderia um minhoto ou um transmontano.

Imagem daqui

De tudo isto e de muito mais darei conta durante todo o próximo ano, assinalando acontecimentos importantes do reinado de Dom Dinis, à medida que forem acontecendo os respetivos aniversários. Para isso, criei inclusive o blogue 2016 - Ano de Dom Dinis, pois aqui no Andanças continuará a haver espaço para outro tipo de publicações. E aproveito para dizer que o meu romance sobre o Rei Lavrador será republicado em edição revista e melhorada.

A todos os que por aqui passam, desejo um Bom Ano Novo!


Nota: as minhas pesquisas sobre Dom Dinis baseiam-se na Biografia do Professor José Augusto de Sotto Mayor Pizarro (Temas e Debates 2008)




 

28 de dezembro de 2015

27 de dezembro de 2015

Cidades Medievais Portuguesas (8)

Antes de ser conquistada por Dom Afonso Henriques, em Outubro de 1147, a cidade de Lisboa já havia pertencido aos cristãos, mais propriamente, ao avô do nosso primeiro rei, o imperador Afonso VI. A cidade foi-lhe oferecida pelo rei mouro de Badajoz, em 1093, junto com Santarém e o castelo de Sintra, em troca de proteção.

Porém, Afonso VI perdeu Sintra e Lisboa, pelo que responsabilizou o genro Dom Raimundo, conde da Galiza. Curiosamente, foi esta perda que abriu as portas ao protagonismo do conde Dom Henrique, pai de Dom Afonso Henriques, pois o imperador confinou Dom Raimundo à Galiza, entregando o condado Portucalense ao outro genro.

Lisboa só se foi tornando na principal cidade do reino mais de 100 anos depois da sua conquista definitiva, com os reis Dom Afonso III e Dom Dinis.





 







Além do Castelo de São Jorge, também a estação do metro do Martim Moniz evoca a conquista de Lisboa em 1147, homenageando, entre outros, o herói que morreu entalado numa das portas da cidade e os cruzados.
 
Fotografias
© Horst Neumann



26 de dezembro de 2015

Conto de Natal (8)



De facto, teve de se esperar, já com o resto pronto, mas não era ainda tarde, quando os genros surgiram com o leitão fumegante, de pele estaladiça. Apesar de já temperado, trazia-se sempre uma malga cheia do molho especial, a tresandar de alho e pimenta. As tias Tininha e Guiomar procederam ao trinchar do bicho, Géninha alegou que não tinha jeito nenhum para aquilo e desfaria a carne.
Havia batata assada e arroz e, na travessa do leitão, rodelas de laranja, que ajudavam a desenjoar da gordura. A refeição foi ensombrada pelo constatar de que o vinho mal chegava e a resistência do avô em ir buscar mais. Apesar de ter a adega cheia, aquilo contrariava-lhe os planos e alegava que o que estava à disposição chegaria, caso fossem comedidos. Narciso já não se segurava de indignação e levantou-se, a fim de ir à adega, quando o avô, que nunca interrompia uma refeição, igualmente se levantou, declarando, com uma energia inabitual, que ele é que sabia qual o vinho que deveria ser bebido. Encaminhou-se para adega com o pano de cozinha que lhe servia de babete ao dependuro, e Narciso foi atrás dele, convencido de que o sogro nunca traria o suficiente. Realmente o avô regressou contrariado, pois o genro insistiu em trazer três garrafas em vez de uma. «Quem há de beber isso tudo?», perguntava, exasperando Narciso: «ó homem, deixe-as ficar aqui à mão, logo se verá se são ou não precisas».
É difícil dizer se o avô conseguiu gozar o resto da refeição. E o neto Filipe, divertido com aquela casmurrice, ainda o espicaçou: «ó avô, já abriste o teu chocolate? Bem podias dar um quadradinho a cada neto». Os primos e a tia Guiomar riram e também Géninha, normalmente defensora do pai, esboçou um sorriso, pois a malandrice fora dita pelo seu tesouro. Os homens não ligaram e a avó, apesar de incomodada, absteve-se de comentar.
No fim, Sandra sentia-se tão enfartada, que prescindiu das sobremesas. O creme e a aletria não tinham, de qualquer maneira, grande sabor, nunca ligara a bolharacos e já se enchera de rabanadas no dia anterior. Já o tio Januário tornou a elogiar a aletria da mãe, emborcando grande quantidade, sob o olhar enfadado da mulher. Ficou uma garrafa de vinho por abrir e o avô, normalmente tão calado, lançou a farpa: «eu bem disse que eram garrafas a mais». Enfim, valeu-lhe que a boa disposição de Narciso andava intimamente ligada à pança bem atestada.
O dia estava frio, mas ensolarado, pelo que se resolveu ir dar um passeio, aproveitando para passar no café. Clara foi, mais uma vez, objeto da chacota dos primos, por ostentar uns botins de camurça de cano tipo fole no tornozelo e apertado na zona onde começava a barriga da perna. Também o tio Carlos, bem bebido, se juntou àquele divertimento dos rapazes.
Apesar de achar que a combinação dos botins com a minissaia rodada da prima lhe dava um aspeto de trovador medieval, Sandra achava de muito mau-gosto aquela chacota e declarou gostar dos botins, que estavam na moda. Minutos depois, já ela havia esquecido o episódio, a mãe veio segredar-lhe a sua surpresa, temperada por um laivo de censura: «gostas mesmo das botas»?
Durante o passeio, Januário e Narciso encetaram as suas discussões políticas, em altos berros, enquanto o tio Carlos preferia a companhia das sobrinhas, caminhando no meio delas, que lhe enfiavam o braço e se riam muito das suas lérias.
Depois do passeio, a festa terminara para Narciso, que se mostrou ansioso por fazer a viagem de regresso. Instigou a família a fazer as malas, quando todos se preparavam para descansar nos sofás da sala. O desagrado de Sandra era ainda maior, porquanto ela gostaria de ficar com a prima, cuja família tornaria a pernoitar nos avós. Januário não queria perder o almoço do dia seguinte, em que a mãe fazia roupa-velha: os restos das batatas, dos grelos e do bacalhau desfeito eram estrugidos em azeite e alho. À despedida, e por entre recomendações ao genro que guiasse com cuidado, a avó desabafou: «gosto muito do Natal, mas também me agrada, quando, no fim, vocês regressam às vossas casas».

No dia seguinte, ao serão, Géninha recebeu um telefonema de sua mãe. Assim que a casa esvaziara, ela procedera às primeiras arrumações e, no corredor do primeiro andar, dera conta de um vaso fora de sítio. Quando o quis arrastar, o vaso abriu-se, despejando a terra para cima da alcatifa! Era óbvio que o despropósito tinha a assinatura dos netos e ela exigia saber qual deles partira o vaso!
A avó nunca telefonava a ninguém, fazia mesmo questão de apregoar que dispunha de telefone só para receber chamadas. Num tempo em que não havia telemóveis nem internet, os telefonemas «para fora», isto é, para uma localidade diferente, exigindo indicativo, eram de facto custosas.
Naquele serão, porém, a avó ligou aos três filhos. Em vão. Nunca se descobriu quem partiu o vaso, os primos cumpriram o pacto que haviam feito entre eles, encolhendo os ombros, alegando não saberem de nada.

E assim se passou mais um Natal. No ano seguinte, a cena repetir-se-ia. E, por mais chacotas, discussões e ressabiamentos que houvesse, Sandra tornaria a sentir-se menos sozinha do que na sua própria casa, ficando, para o resto da vida, com a sensação de que aqueles convívios natalícios tinham sido os melhores da sua vida.