Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

3 de julho de 2011

Conquista de Santarém I - Os Preliminares

Foi com a conquista de Santarém, a 15 de Março de 1147, que D. Afonso Henriques iniciou verdadeiramente o alargamento do território para sul. Já havia mandado construir o castelo de Leiria e colocado um contingente em Tomar, locais que, no entanto, se situavam na chamada "terra de ninguém". E, apesar de a vitória na Batalha de Ourique ter sido importantíssima para a sua fama de guerreiro, não proporcionou a conquista de um palmo de terra que fosse.

A conquista de Santarém foi levada a cabo usando métodos menos honrosos, que não estavam de acordo com o codex da cavalaria da época (com o termo "cavalaria" refiro-me ao mundo do cavaleiro nobre medieval). Também é verdade, porém, que os combates inseridos na Reconquista hispânica adquiriram contornos muito próprios. Os monarcas, e o próprio imperador Afonso VII, serviam-se de subterfúgios usados pelos cavaleiros vilãos, nas suas razias em terras de mouros.

Cavaleiros vilãos eram aqueles que, apesar de serem proprietários de terras, o que lhes proporcionava riqueza suficiente para lutarem a cavalo, não possuíam origem nobre. Depois da Batalha de São Mamede, Afonso Henriques mudou-se para Coimbra e nota-se um certo esforço da sua parte para se distanciar da poderosa nobreza de Entre Douro e Minho, exceptuando certas famílias que lhe eram mais chegadas. Talvez por recear que alguns desses nobres se lhe tornassem perigosos. O facto é que há uma aproximação aos cavaleiros vilãos dos concelhos a sul do Douro, cuja lealdade era mais fácil de obter.



Esta opção de Afonso Henriques por métodos menos aconselháveis de conquista poderá ter tido a ver com a pressão sentida. Ele já saberia que os cruzados, que o haveriam de ajudar a tomar Lisboa, chegariam nesse Verão. Mas Lisboa seria muito mais fácil de conquistar, se Santarém já estivesse em mãos portuguesas. Por um lado, os mouros de Lisboa não poderiam contar com reforços vindos daquele lado; por outro, seriam os portugueses que controlariam o tráfego no rio Tejo.

A conquista de Santarém teria, por isso, de ser rápida, não havia tempo para cercos demorados. E os cavaleiros vilãos eram especialistas em penetrar em castelos e povoações à socapa, pela calada da noite. Faltava saber se esse método permitiria conquistar uma cidade com a envergadura de Santarém.

Não se sabe bem como a operação foi preparada, mas está provado que Afonso Henriques fez muito segredo dela. D. Lourenço Viegas Espadeiro (filho de D. Egas Moniz), D. Gonçalo Mendes Sousão e D. Fernão Peres Cativo, todos grandes amigos do rei, foram os únicos barões a quem ele confiou os seus planos.


            Aos três amigos, o monarca anunciou:
            - Chegou a altura de vos expor o plano de ataque a Santarém.
- Já há um plano? - admirou-se Lourenço.
- A expedição terá lugar daqui a um par de semanas - explicou o rei. - Combinei tudo com os cavaleiros de Coimbra, os cavaleiros vilãos dos concelhos e os Templários de Soure.
            Os três entreolharam-se estupefactos. Gonçalo ironizou:
            - Mas que honra que nos conferis, a mim e a D. Lourenço! Entre a nobreza do norte, somos os primeiros a ser informados.
            - Sois os primeiros e sereis os únicos - ripostou Afonso, que já contara com uma reacção daquele tipo.
Como representante de uma das famílias mais poderosas de Entre Douro e Minho, era natural que o Sousão se sentisse, por um lado, ofendido por não ter colaborado na execução do plano, por outro, desconfiado por não ver ali os outros barões. Na verdade, Afonso tinha hesitado em convocá-lo. Mas Gonçalo Mendes iniciara-o na arte de combater, contribuindo, como poucos, para fazer dele um guerreiro. Além disso, tinha sido genro de Egas Moniz, ao ter casado com a entretanto falecida Dórdia Viegas, e a filha de ambos, Teresa Gonçalves, fazia parte do círculo restrito da rainha.
            - Trata-se de um ataque surpresa - esclareceu o rei. - Quanto menos gente ficar a saber, melhor. A penetração na cidade acontecerá durante a noite, bem à maneira das milícias vilãs, que usam este truque nos seus fossados. Os barões do norte dificilmente aceitariam em participar num empreendimento deste tipo.
            - Tendes de concordar - atalhou Lourenço - que não é uma maneira muito nobre de fazer guerra.
- Mas necessária, neste caso. A conquista de Santarém é imprescindível para que tenhamos sucesso no ataque a Lisboa, pois permite-nos controlar o Tejo e cortar o abastecimento. E tudo terá de ser resolvido, antes da chegada dos cruzados.

...
- As povoações de fronteira usam subterfúgios destes, nos seus ataques aos mouros. Truques, aliás, que aprenderam com os próprios infiéis. No fundo, aprenderam uns com os outros, pois constantemente se fazem razias de parte a parte. E esqueceis que o meu próprio primo, o imperador de toda a Hispânia, se serviu de um ataque surpresa em Calatrava, há coisa de um mês, em pleno Inverno, altura normalmente reservada às tréguas? Foi bem sucedido e a Cristandade aplaude. Também a conquista de Santarém representará uma vitória de cruzada, que o próprio Papa reconhecerá.
Depois de um curto silêncio, Lourenço perguntou:
- Falastes dos Templários de Soure. Eles já deram o seu acordo?
- Claro. Estão desejosos de vingar o ataque de há três anos. Conseguiram salvar o castelo, mas os mouros devastaram a região.

...
Afonso deu-lhes mais algum tempo de reflexão e inquiriu, depois:
- Achais que ides manchar a vossa honra, lutando ao lado das milícias vilãs, mesmo quando o vosso próprio rei não hesita em fazê-lo?
- Certamente que não - replicou Fernão Peres Cativo. - Sabeis que podeis contar comigo, para o que der e vier.
- Comigo também - anunciou Lourenço, filho de Egas Moniz. - Sois como um irmão para mim e ser-vos-ei fiel até ao meu último suspiro.
Afonso olhou-o emocionado. E também o Sousão acabou por lhe confirmar a sua fidelidade.

5 comentários:

Bartolomeu disse...

Eis aqui, mais uma prova da impoooortância que os preliminares têm para que a conquista, seja de Santarém ou de outro reduto fortemente fortificado, se concretize com absoluto sucesso.
No caso de Santarém, podemos admitir que tenha havido ali pelo meio alguns pormenores menos... éticos na observação do código de cavalaria, que exortava à observação da honra do valor guerreiro, da honestidade. Logo a seguir, na conquista de Lisboa a coisa também rondou um bocado o obscuro, tanto em relação ao cumprimento da palavra dada ao cruzados, como à tomada do castelo, própriamente dita. Isto evidentemente, para além dos aspectos místicos que envolveram o primeiro rei de Portugal e um certo personagem, misterioso que apareceu certa noite na tenda do nosso primeiro rei e lhe revelou o local preciso e a hora em que deveria mandar dar iníccio ao assalto decisivo às muralhas do castelo, aquele que ao fim de muito tempo de cerco, permitiu a a Afonso Henriques, conquistar a cidade. Mais uma vez, foram os preliminares que ditaram o sucesso da entrada... na fortaleza... vencendo definitivamente as defesas.
;)

antonio ganhão disse...

O que tu me dizes é que nunca respeitámos as regras da nobre cavalaria... não soubemos crescer como povo.

Cristina Torrão disse...

Bartolomeu, mesmo que já conheça a história, continue a seguir e dê a sua opinião ;) Também há-de vir a conquista de Lisboa.

Não exageremos, implume. As regras da nobre cavalaria eram desrespeitadas um pouco por todo o lado. Mas que o Afonso Henriques usou de muito truque, isso usou. E, no entanto, até houve uma tentativa de o canonizar, salvo erro, iniciada por D. Manuel.

fallorca disse...

«...usou de muito truque, isso usou...», aliás, como mandam os preliminares, fiufiu...

(desculpa, mas não resisti eheh)

Cristina Torrão disse...

Vai aparecendo, fallorca :)