Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

31 de dezembro de 2021

Os bons momentos

Apesar de todas as desilusões, neste ano de 2021, resolvi recordar momentos felizes. Na minha estadia alargada em Portugal, no verão passado, senti como se tivesse regressado aos tempos “antigos”. Convivi despreocupadamente e sem máscara com os meus pais, outros familiares e amigos. A partir de Macedo de Cavaleiros, fiz algumas viagens: Porto, Gaia, Espinho, Feira e Óbidos (onde passei um dia maravilhoso em casa do escritor João J. A. Madeira). Visitei finalmente a pequena localidade espanhola de Fonfría, na província de Zamora, berço de uma minha bisavó, que, por qualquer razão, atravessou a fronteira com os pais, ainda pequena, acabando por se estabelecerem na também pequena aldeia transmontana do Lombo, com vista para o Santuário de Balsamão.

Houve um outro passeio especial, a Ponte de Lima.

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Não só ficámos a conhecer essa linda vila minhota (eu já lá tinha estado, mas em criança e de pouco me recordava), como também travámos conhecimento com um escritor alemão radicado naquela zona, apreciador de vinho verde tinto, e o qual já, por três vezes, aqui referi.

Sob o pseudónimo Mario Lima, publicou, até agora, três policiais passados na cidade do Porto, criando uma simpática equipa da PJ, chefiada pelo carismático inspector Fonseca. Para além do suspense criado nos seus enredos, Mario Lima revela grande talento na descrição da atmosfera da cidade nortenha. Infelizmente, os seus livros existem apenas em língua alemã, mas, quem sabe, talvez alguma editora portuguesa ainda se interesse por eles.

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Aproveito para agradecer a simpatia e a disponibilidade do “Mario” e da Birgit, naquele lindo dia de setembro. E, mesmo que o novo ano não nos traga o fim da pandemia, espero poder viver momentos tão agradáveis como estes.

 

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Não se esqueçam: a vida é, sobretudo, aquilo que fazemos dela.

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26 de outubro de 2021

Pertinente!

A docente na Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA), Patrícia Lino considera que os mitos em que assenta o discurso do colonialismo português continuam a ter impacto na sociedade e precisam de ser desconstruídos.

Em “O KIT de Sobrevivência do Descobridor Português no Mundo Anticolonial”, Patrícia Lino usa o humor para expor contradições e hipocrisias na estrutura, ainda vigente, da visão do colonialismo português.

Entre as ideias que a autora pretende desconstruir pela paródia estão a visão do colonialismo português como menos violento que outros, o excecionalismo do descobridor português benigno ou a exclusividade nacional do conceito de saudade.

“A dinâmica opressiva do poder colonial, que se impõe sobre os que são diferentes, é sempre igual, não tem nada de misterioso”, referiu Patrícia Lino.

A professora considerou que o colonialismo “é a base de todos os outros poderes” e que o processo de colonização portuguesa só foi possível devido à casa patriarcal e a subjugação das mulheres.

“O processo coloniza não só o corpo da mulher indígena e negra no território das colónias, mas também o corpo da mulher portuguesa que fica no território imperial, pensando que faz parte do império e a suster as casas grandes”, afirmou. “Sem essa casa patriarcal heteronormativa, o colonialismo não existiria”.

O livro, além de estar a ser usado em várias universidades norte-americanas e europeias, foi selecionado como semi-finalista no Prémio Oceanos 2021, que distingue obras literárias provenientes de todos os países de língua portuguesa e irá revelar o vencedor em dezembro.

Muitos hão de acusar esta professora de anacronismo, pois, como ela própria diz, discutir o colonialismo implica desconstruir todo o poder onde o privilégio da elite assenta. Porém, anacronismo não é assumir os erros do passado. Anacronismo é manter esses erros no presente.

23 de outubro de 2021

Linguagem inclusiva

«Elena Ferrante é uma das grandes escritoras contemporâneas».

[The New York Times]

Frase impressa na contracapa do livro A Amiga Genial, de Elena Ferrante

(tradução de Margarida Periquito, Relógio d'Água 2011)

Esta frase suscita-nos dúvidas. Quando diz «uma das grandes escritoras contemporâneas», engloba escritores e escritoras? É Elena Ferrante apenas uma das melhores entre uma parte dos que escrevem, ou entre todos? Considerando que a frase foi originalmente escrita em inglês, concluímos que englobará o universo de todas as pessoas que escrevem livros. Mas é preciso considerar o original para tirarmos esta conclusão. À semelhança da maioria das línguas, a nossa, neste caso, não esclarece.

Paciência, dirão alguns, é assim que funciona a língua portuguesa. E não seria melhor mudar? Não, é a nossa língua, com as suas regras, nada a fazer.

Pois, não me parece! E explico porquê.

As línguas não são entidades autónomas, algo superior que se rege por leis divinas e que existe independentemente de nós. Nós não somos escravos da língua. Somos mais velhos do que qualquer idioma, já por cá andávamos, antes de eles surgirem. As línguas foram criadas e desenvolvidas unicamente pelo ser humano e existem para o servir, não o contrário. Claro que uma língua deve ser respeitada e também desenvolve uma dinâmica própria, mas essa dinâmica está intimamente ligada ao nosso comportamento, às nossas crenças, hábitos, etc. Ela reflete aquilo que vivemos e em que acreditamos. As regras que a definem foram sendo criadas ao longo dos tempos, a fim de facilitar a comunicação. Nos inícios da nossa nacionalidade, um português do Norte dificilmente compreenderia um português do Sul, havia grandes diferenças regionais (e até línguas diferentes). Ao decretar o português como língua oficial da corte, um dos objetivos de D. Dinis foi precisamente criar uma língua-padrão suscetível de ser entendida em todos os cantos do reino.

Até, digamos, há trinta anos, passava pela cabeça de muito pouca gente que uma mulher pudesse estar incluída no clube restrito dos melhores escritores mundiais (entre 1901 e 1990, o Prémio Nobel da Literatura foi atribuído a apenas seis autoras, não chega a uma por década). Quando se falava de uma das melhores escritoras, considerava-se, em regra, apenas o mundo das mulheres que escreviam. Por isso, não havia necessidade de clarificar casos destes. Se recuarmos ainda mais no tempo, nem sequer se considerava que uma mulher pudesse escrever livros.

Vivemos, há milénios, numa sociedade patriarcal. As línguas foram desenvolvidas por essa sociedade e projetam isso mesmo. Para dar um exemplo: no galaico-português, não havia género feminino para muitos substantivos, nomeadamente os acabados em “or”. Por isso se dizia “senhor” mesmo em relação a uma mulher. Na nossa Idade Média, havia “lavrador”, mas não havia “lavradora”. As mulheres não contavam, mesmo aquelas que fizessem o mesmo trabalho de homens.

As coisas vão mudando ao longo dos tempos, mas algumas custam muito a mudar. E é um erro considerar que já chegámos ao fim do processo. Nem preciso de recuar assim tanto no tempo. Tenho cinquenta e seis anos e lembro-me bem do sururu criado, quando, depois do 25 de Abril, Maria de Lurdes Pintasilgo foi nomeada primeira-ministra. Hoje, custa a acreditar, mas não havia, na língua portuguesa, o género feminino para a palavra “ministro”. Nem para “juiz”, já agora (como ainda hoje não há para “bispo”, pois a Igreja Católica, ao contrário da Luterana, não concebe mulheres a exercerem essa função). Quando, em 1979, se instalou a discussão, com gente a ter o desplante de clamar que uma mulher “ministro” devia ser chamada “ministra”, a maior parte da população indignou-se (tive um belo exemplo em minha casa: o meu pai, professor do ensino primário, era profundamente alérgico a termos como “ministra” e “juíza”). A designação “primeira-ministra” era das maiores aberrações linguísticas que essas pessoas podiam imaginar, atingia estatuto de sacrilégio. Os homens (e muitas mulheres) desdenhavam ou zombavam. Achava-se preferível, imagine-se, dizer “a primeiro-ministro”, ou “a senhora primeiro-ministro”, muito à semelhança do “mia senhor” medieval.

Dizer que a gramática não tem sexo e que não é discriminatória é uma falácia. O plural masculino abrangente é de facto discriminatório. Vem igualmente da era medieval, em que as mulheres não contavam. A palavra “portugueses”, usada para se dirigir aos naturais de Portugal, vem desses tempos, em que as mulheres estavam impedidas de tomarem posições e resoluções sociais, porque os homens tomavam por elas. O rei, os condes e os nobres em geral, quando comunicavam as suas resoluções, ou davam as suas ordens no que respeitava ao governo das suas terras, não consideravam dirigirem-se às mulheres. Por isso, “portugueses” chegava muito bem. E chegou, até há quase cinco décadas. Antes de as mulheres poderem votar, que necessidade havia de os políticos se dirigirem às “portuguesas”?

É interessante que muita gente rejeita a versão “portuguesas e portugueses” (a ordem é indiferente), mas acha muito natural dizer “minhas senhoras e meus senhores”. Entre os defensores e as defensoras da linguagem inclusiva, há reivindicações complicadas, mas não me parece que casos destes sejam difíceis de pôr em prática. Nas missas alemãs, por exemplo, tanto católicas, como protestantes, já é regra dizer “irmãos e irmãs” (a ordem é, mais uma vez, aleatória). E, sim, a atual tradução alemã do Evangelho inclui essa fórmula. No Jornal Católico da diocese de Hildesheim, também se têm operado algumas mudanças, com a preocupação de não tornarem o texto muito complicado. Quando se nomeiam várias profissões, escrevem-se alternadamente no género masculino e feminino, por exemplo: "médicos, advogadas, professores, engenheiras, enfermeiros, escritoras". Havendo consenso em que, escrevendo assim, são considerados os dois géneros nas várias profissões nomeadas, esta modalidade bem se poderia tornar regra em qualquer língua.

Podia dar muitos mais exemplos de como a nossa língua reflete toda uma postura patriarcal e machista. Mas também considero dever evitar-se radicalizações (ressalvo que não tenho competência para falar em nome de grupos que não se reveem nos géneros tradicionais). Muitas propostas tornam a escrita (e a fala) demasiado complicada. Terá de se encontrar uma solução prática, que, porém, só será atingida através de um debate sério e ponderado. Mas eu acredito na criatividade e na inteligência do ser humano. Não encontrar uma forma praticável de linguagem inclusiva seria um verdadeiro atestado de incompetência ao homo sapiens sapiens.

Vai demorar até encontrarmos um consenso, ou um modelo, que não nos complique demasiado a vida. Estou, contudo, certa de que a mudança acontecerá. Uma língua tem de ter regras, sim, mas somos nós que as fazemos. As leis também se mudam e adaptam ao progresso humano. As regras da gramática mais não são do que as leis da língua.

20 de setembro de 2021

“Mãe de reis e avó de impérios, vela por nós!”

- Acaso achais que haja alguém que sofra mais do que eu com o rumo que nossas vidas tomaram? Desejo a paz. Desejo o melhor para a minha família e para a minha terra, as duas cousas que mais amo. E é em nome desses amores, pelo seu bem-estar, que vos peço que intercedais junto do papa, a fim de anular o matrimónio de Fernando Peres de Trava com Sancha Gonçalves. 

Ergueu as sobrancelhas em grande espanto:

- Anular o matrimónio de D. Fernando? A que propósito?

- Pensei que o motivo era inquestionável. Carrego o fruto da minha união com o filho do conde de Trava e não desejo continuar a viver em pecado. D. Fernando e eu pretendemos casar. E seria do interesse de todos que a situação se regularizasse.

- Não desejais viver em pecado? Pois deveríeis haver pensado nisso antes de pecar!

- D. Paio Mendes, somos as duas maiores instâncias deste condado. Não ajamos como se fôsseis vós um pároco de aldeia e eu uma lavadeira que se deixou encantar pelas palavras de um mancebo de estrebaria! Está em causa a nossa terra, que herdei de meu pai. Pretendo engrandecê-la e só o poderei fazer se remarmos todos juntos.

- Estais à espera que eu, os bispos e os barões pactuemos com mancebia e incesto? A vingança de Deus cairá sobre vós, D. Teresa. E o castigo será gigantesco!

Engoli em seco, como que prevendo as desgraças que estavam para vir. Recusei-me, porém, a mostrar fraqueza:

- Tal não sucederá, D. Paio, se vós derdes ouvidos a vossa rainha e tudo fizerdes para que ela possa desposar o pai de seu futuro filho.

- Não se pode usar o poder da Santa Igreja a seu bel-prazer, minha senhora, lavando pecados mortais, apagando-os como se não houvessem existido!

- Não me façais rir, arcebispo! Bem sabeis que a Igreja anula matrimónios a pedido de reis e príncipes, a fim de legitimar bastardos, ou repudiar esposas incómodas e estéreis. A vossa Igreja não se escusa a pactuar com os tais pecados que referistes, quando se trata de homens!

- Ensandecestes, D. Teresa? Quereis vós, herdeira da Eva pecadora e tentadora, medir-vos com os excelsos varões deste mundo?

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Este diálogo não passa de ficção, mas foi escrito a fim de realçar as dificuldades enfrentadas por D. Teresa apenas por ser mulher. Já sei, vão acusar-me de anacronismo, que a mentalidade daquele tempo era essa, etc. e tal. Acontece, porém, que D. Teresa foi muito maltratada pela História, ao longo dos séculos. Nos últimos vinte anos, tem-se vindo enfim a recuperar a sua imagem, mas enfrentando a resistência de muitos, isso sim, verdadeiro anacronismo.

Desde sempre se convencionou considerar D. Afonso Henriques o sucessor de seu pai, continuando a sua obra, como se os dezasseis anos em que D. Teresa esteve à frente do condado Portucalense não existissem. Ela é considerada um acidente de percurso, uma mulher promíscua, que queria “vender” o condado aos galegos. Valeu-nos ter um filho justiceiro, que pôs tudo em ordem e recuperou o bom nome do pai.

Na verdade, D. Afonso Henriques continuou mais a obra da mãe do que do pai. D. Teresa fez muito mais pela independência de Portugal do que o marido, ao recusar aceitar sua meia-irmã D. Urraca como a única herdeira do pai de ambas. D. Teresa insistiu na divisão da herança: Leão e Castela para a irmã, Galiza e Portucale para ela. E a sua luta deu frutos, colhidos pelo filho que, afinal, não era tão avesso à ideia de juntar Galiza a Portucale, pois, assim que assumiu o poder, andou, durante cinco anos, a tentar conquistar territórios galegos. Se nos guiarmos pelas fontes históricas, em vez de por preconceitos e lendas medievais, constatamos que D. Afonso Henriques colaborou com a sua mãe até ao ano de 1127, ou seja, só um ano antes de S. Mamede ele decidiu fazer-lhe oposição, ao contrário dos barões portucalenses, que começaram a abandonar a corte de D. Teresa já por volta de 1121.

Afonso Henriques é venerado em Portugal (e com razão), mas onde está o nosso reconhecimento pela obra de D. Teresa? Foi, por isso, com muito agrado que vi esse reconhecimento numa pequena vila portuguesa, onde ela é venerada como uma rainha (a própria aliás assinava os documentos da cúria com esse título e foi inclusive assim tratada pelo papa Pascoal II). Eu já sabia que em Ponte de Lima havia uma estátua dela, mas é importante vê-la ao vivo, admirá-la, a fim de assimilarmos melhor essa homenagem.

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Adorei a estátua, faz-lhe toda a justiça. D. Teresa segura na mão o foral que concedeu à vila, em 1125, ainda antes de Portugal existir.

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Uma homenagem mais do que merecida.

4 de setembro de 2021

Dona Teresa na Feira

Terá sido Portugal fundado por uma Mulher?

Mais do que o conde Dom Henrique, Dona Teresa foi a preparadora do caminho que seu filho Afonso haveria de percorrer, ao insistir em dividir a herança de seu pai com a meia-irmã Urraca. Ainda antes de assumir o poder, Dom Afonso Henriques intitulava-se infante por sua mãe se intitular rainha. Neste romance, Dona Teresa, moribunda agonizante, recorda toda a sua vida, na urgência e na clareza de quem nada tem a perder.

 


O meu romance sobre Dona Teresa pode ser comprado na Feira do Livro de Lisboa, no Pavilhão B96 (Poética)



 

 

23 de agosto de 2021

Histórias da Carochinha

Nesta minha estadia alargada em Portugal e apenas com acesso a oito canais televisivos (que são só seis, pois dois estão de férias), quase me limito aos da RTP. Acontece que a RTP Memória passa, nesta altura, a série “Walker, o Ranger do Texas”, não pertencente às minhas preferências, mas de algum agrado do meu marido (o meu sogro era fanático). E como é de minha opinião que podemos aprender com tudo, mesmo com coisas de que não gostamos, ou com as quais não concordamos, tenho visto alguns episódios. Pensei que me pudessem servir de reflexão. E serviram mesmo.

“Walker, o Ranger do Texas” é baseada num velho pressuposto: há alguém que tem sempre razão. A série assenta numa personagem de moral indiscutível, inteligência a toda a prova, forma física infalível e técnicas de combate invencíveis. Para ser ainda mais politicamente correcta, esta personagem reconhece as qualidades das artes marciais, é sensível aos ensinamentos cherokee e muito amiga dos negros (conquanto estes não lhe contestem a supremacia e estejam dispostos a desempenhar o papel do "banana", quando dá jeito). Concluindo: estamos perante um homem que sabe sempre tudo e age sempre de forma correcta, de acordo com os princípios que lhe foram ensinados na infância e na juventude, por pessoas (entenda-se, homens) igualmente sem defeitos e de uma moral ímpia.

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Homens assim não existem. O Walker é tão fictício, que podia ser representado por uma figura de desenhos animados. Esta série está ao nível de “Uma Casa na Pradaria”, ou dos contos de fadas dos Irmãos Grimm. O Ranger Walker mais não é do que a fada da Gata Borralheira, um ser com toque de Midas, pronto a resolver os problemas de gente em aflição.

E qual é o problema, perguntam vocês. Não se pode sonhar um bocadinho? Claro que pode. Desde que se tenha consciência disso. Não levamos as peripécias da família Ingalls a sério, assim como sabemos não existirem fadas. Mas muitos acreditam no Walker! E acreditam que o mundo pode ser como o da série: nunca há dificuldade em distinguir o Bem do Mal, todos têm o seu papel bem definido na vida e, caso esta ordem seja ameaçada, há sempre um justiceiro que põe tudo no lugar, um justiceiro que nunca cai em tentação, nunca se deixa corromper, nem nunca comete abusos. Quando o Walker pega numa arma, dispara sempre na direcção certa e atinge sempre o alvo certo. Quando o Walker faz um juízo sobre uma pessoa, nunca se engana (e raramente tem dúvidas). O Walker só agride alguém que o merece, nunca perde a calma nem a paciência com outros. Não há dinheiro no mundo que leve o Walker a fechar os olhos a uma incorrecção, a um desvio que seja.

Estes sonhos transformados em realidade são aproveitados por manipuladores. Até há pouco tempo, os EUA tiveram um Presidente que convenceu muitos norte-americanos ser capaz de construir uma América à medida da série do Walker, um mundo onde não há lugar para desvios, onde todas as famílias vivem felizes e seguras para sempre, onde as crianças têm sempre paciência para ouvirem os sermões dos adultos e onde as mulheres, profissionalmente, têm o rigor da Procuradora Alex Cahill e, em família, são dóceis, cumprindo o papel que dela se espera (mas, sinceramente, alguém consegue ver a Alex Cahill despenteada e desmaquilhada a levar com os salpicos de óleo, enquanto frita peixe?).

«Casaram e viveram felizes para sempre» - este é o final de chave de ouro nas histórias da Carochinha. Na vida real, todas as famílias escondem os seus podres.

11 de julho de 2021

Europa sem fronteiras

 

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Conseguimos agendar a vacinação cedo, para a nossa idade, com a marca desejada (Biontech/Pfizer), tivemos efeitos secundários leves (cansaço, dores de cabeça e no braço, que aliás não justificaram tomada de analgésicos; na segunda dose, senti ainda náusea durante 24 horas). E obtivemos o certificado digital.

Houve uma certa euforia, ao sabermos que ficaríamos despachados a 21 de junho, uma segunda-feira, e planeámos a nossa viagem a Portugal para o fim-de-semana seguinte. Embora soubéssemos que teríamos de continuar a cumprir as regras básicas de higiene (máscara, desinfeção das mãos, distância), não víamos entraves à viagem. Porém, ainda antes de tomarmos a segunda vacina, começaram as dúvidas. As informações eram contraditórias, para quem viaja de carro, nomeadamente, em relação à fronteira francesa. As indicações variavam conforme as fontes consultadas: Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, ADAC (automóvel clube da Alemanha), embaixada francesa em Berlim, sites da ARD ou ZDF. Nuns casos, falava-se em vacinação completa, ou teste PCR; noutros, o teste podia ser PCR ou antigénio; ainda noutros, a vacinação tinha de ter, no mínimo, quinze dias. E, consultando diariamente as fontes, estas mudavam nos próprios sites: hoje isto, amanhã aquilo. Enfim, uma barafunda!

Ainda pensámos em adiar a viagem, à espera dos tais quinze dias depois da vacinação. Mas todos sabemos que tal adiamento implica algumas dificuldades, como datas de férias, hotéis já reservados (pernoitamos duas vezes em França), preparações logísticas em casa, etc. Como os testes antigénio se vendem em qualquer supermercado alemão por cerca de 80 cêntimos, resolvemos comprar uma dezena deles, a fim de estarmos em condições de fazer um nas barbas de algum guarda fronteiriço mais implicativo. Apesar de as fontes não serem claras quanto ao tipo de teste, torcíamos para que  chegasse o antigénio, junto com a vacina, apesar de esta ser ainda recente.

Fizemo-nos ao caminho no dia planeado. Tínhamos lido que não havia controle entre a Alemanha e a Holanda e assim foi. Não fosse a redução de velocidade, na zona de fronteira, até surgir a placa azul com a palavra Nederland rodeada das estrelas douradas, e nem notávamos que tínhamos mudado de país. Não tínhamos conseguido informações quanto à fronteira belga, mas o cenário foi o mesmo. Cerca de dez quilómetros depois de Maastricht, nova redução de velocidade, placa a anunciar o novo país, o piso da auto-estrada a piorar substancialmente… bem-vindos à Bélgica! Sem qualquer controle.

Seguia-se a temida fronteira francesa, já imaginávamos guardas fronteiriços a mandarem-nos para trás, depois de mais de 700 km de viagem… Mas, para nosso espanto, o filme repetiu-se: controle zero! Passámos a placa France com as conhecidas estrelas sem ninguém nos incomodar. Nem sequer melhorou o piso da auto-estrada, mas isso já sabíamos. O piso costuma ser bom em França, exceção feita junto à fronteira belga, até se passar Valenciennes e retirar o título da portagem. Só aí se tem a sensação de ter entrado noutro país.

Nos hotéis, atuamos como da última vez, apesar de ser muito maçador proceder à desinfeção de superfícies, interruptores e puxadores de portas, depois de quase mil quilómetros de estrada e ainda antes de nos refrescarmos e instalarmos.

Na segunda noite, já em Bayonne (ou Baiona, na versão basca), perguntávamo-nos o que aconteceria na fronteira espanhola. E realmente mandaram-nos parar! Já me preparava para mostrar o certificado da vacina, rezando para que não ligassem à data da segunda toma, quando reparei que as duas guardas fronteiriças não tinham máscara, nem sequer exigiram que as puséssemos. Não eram espanholas, mas francesas, de cassetete na mão. Bem, já por várias vezes, no passado, demos com guardas fronteiriços armados até aos dentes, no País Basco. Mas ao tempo que isso lá vai… Queriam saber para onde íamos. Portugal! E com que objetivo? O meu marido balbuciou “vacances” e eu achei por bem dizer que era portuguesa, pois o carro tem matrícula alemã e o Horst pode passar por muita coisa, mas nunca por português. Ela olhou-me surpreendida, mas ainda perguntou quanto dinheiro levávamos. Dissemos uma quantia qualquer e lá nos deixaram passar. Um controle à antiga. De vacinas, testes, Covid não quiseram elas saber!

A fronteira portuguesa em Quintanilha, perto de Bragança, tinha aquele aspeto abandonado de sempre, no meio dos montes transmontanos. Atravessámos a ponte sozinhos, como se Portugal fosse vazio de gente e nós os únicos interessados em entrar neste curioso país.

No pé em que as coisas estão novamente, só espero que a vacina nos sirva de alguma coisa. Seja aqui, seja noutro lado.

28 de maio de 2021

A Tia Júlia e o Escrevedor


 

Apesar de alguns contornos trágicos (explicarei mais à frente), este é um divertido livro do vencedor do Prémio Nobel de 2010. Divertido será parco atributo para uma obra irónica, muitas vezes auto-irónica, e onde se articulam tantos temas dignos de reflexão, mas o facto é que me diverti muito ao lê-la.

É um romance com elementos autobiográficos. Encontramos Mario Vargas Llosa com dezoito anos, estudante de Direito, em Lima. Apesar de a família ter grande planos para ele (há de tornar-se jurista ou político famoso), Marito, ou Varguitas (como lhe chamam) pouco liga ao curso, pois o seu grande sonho é tornar-se escritor. O seu trabalho numa estação radiofónica, onde prepara os noticiários, é-lhe igualmente mais importante do que os estudos, enquanto se vai ensaiando na escrita de contos, que aliás nada impressionam quem o ouve lê-los. Por isso, ele modifica-os constantemente, acabando por deitar os manuscritos ao lixo.

A dita estação de rádio contrata o boliviano Pedro Camacho, um dos mais famosos criadores de radionovelas da América Latina, sendo aquelas um grande entretenimento familiar, na altura (anos 1950). Varguitas é um apaixonado pela literatura e já leu vários clássicos. Por isso, e apesar da sua juventude, tem consciência de que os guiões radionovelescos não possuem qualidade literária. Mesmo assim, Pedro Camacho fascina-o.

Esta fascinação baseia-se na capacidade criativa do boliviano e na sua dedicação à criação dos folhetins. O homem passa a vida a escrever, quase nem dorme. Escreve os guiões de várias radionovelas ao mesmo tempo, dá instruções aos atores, durante as gravações, e alcança um sucesso enorme entre os ouvintes com os seus enredos intrincados e, alguns, extremamente trágicos. Daí, a tal nota trágica deste romance, pois Vargas Llosa alterna, capítulo a capítulo, a sua própria história com os enredos do criador boliviano.

Nas suas conversas com Pedro Camacho, Varguitas ouve-o atentamente a explicar em que consiste a sua "grande arte", quais devem ser as estratégias a seguir e os pontos a considerar por um criador de enredos. Apesar do tom irónico usado por Vargas Llosa, em momento algum ele põe em causa o genuíno interesse do jovem (ele próprio) pelo "escrevedor" de radionovelas, mostrando uma atitude descomplexada, dando mesmo a entender que algumas indicações dadas por Pedro Camacho lhe foram úteis na sua vida de escritor (que outro vencedor de Nobel confessaria tal coisa?).

Porém, ainda mais empolgante que as radionovelas, se revela a vida de Varguitas, que se apaixona por uma tia divorciada e catorze anos mais velha do que ele. Na verdade, ela é apenas irmã de uma sua tia por casamento, mas, na mentalidade sul-americana da altura, eles são, para todos os efeitos, parentes chegados. Divorciada de fresco, causando incómodo na família, a tia Júlia, bonita e elegante nos seus trinta e poucos anos, passa uma temporada em Lima, em casa da irmã e do marido desta, os tios de Marito, onde ele almoça frequentemente. O jovem já não via a tia Júlia desde a infância e a atração entre eles é imediata.

Os dois acabam por iniciar um namoro que, ao ser descoberto, causa grande escândalo. Perdidamente apaixonado, Varguitas, apesar do medo que tem do pai (por ele confessado) e de ser menor (até aos vinte e um anos), acaba por pedir a tia em casamento. E ela aceita. Ora, Marito não pode casar sem autorização expressa do temido progenitor e, na procura de um alcaide que feche os olhos a tal requesito, a tia Júlia e ele vivem uma série de peripécias que nada ficam a dever aos enredos radionovelescos de Pedro Camacho.

Vargas Llosa faz assim um interessante paralelo entre essa época da sua vida e os guiões de Pedro Camacho, numa espécie de homenagem a esses criadores de radionovelas, dos quais já ninguém se lembra, mas que entretiveram as famílias durante décadas. Além disso, e depois de chegar à conclusão de que «toda a gente sem excepção podia ser tema de conto» (p. 224), Vargas Llosa intui que a vida real, a fonte de inspiração de qualquer escritor, ou "escrevedor", pode enveredar por caminhos tão absurdos e intrincados como um enredo de folhetim. Tudo depende da maneira como se escreve.

Já agora, não resisto a transcrever esta passagem hilariante (entre muitas outras), em que Varguitas entrevista um famoso toureiro venezuelano para a estação radiofónica onde trabalha (p. 225):

«Na manhã seguinte, horas antes de tomar o avião, entrevistei-o num salãozinho do Hotel Bolívar. Deixou-me perplexo comprovar que era menos inteligente que os touros que lidava e quase tão incapaz como eles de expressar-se através da palavra. Não conseguia construir uma frase coerente, nunca acertava nos tempos verbais, a sua maneira de coordenar as ideias fazia pensar em tumores, em afasia, em homens-macacos. A forma era não menos extraordinária que o fundo: falava com uma pronúncia infeliz, feita de diminutivos e apócopes, que matizava, durante os seus frequentes vazios mentais, com grunhidos zoológicos».


24 de maio de 2021

Patriarcado

A propósito da dominância dos homens sobre os outros seres humanos e sua consequente impunidade, lembrei-me de algumas histórias passadas na aldeia de origem do meu pai, perdida nos montes transmontanos, no concelho de Macedo de Cavaleiros. Das que conheço, escolhi quatro, todas passadas durante a primeira metade, ou meados, do século XX. Achei interessante apresentar testemunhos deste contexto especial, porque, devido ao isolamento da aldeia até aos anos 1980, a justiça raramente lá chegava. Era um mundo fechado. E este acaba por ser um retrato da nossa província, pois em todo o lado haveria casos semelhantes. 

1 - Um pastor passava o verão com o rebanho no monte, não ia dormir a casa meses a fio. Uma sua filha costumava ir levar-lhe a comida, todos os dias, começou a fazê-lo com cerca de dez anos, uma caminhada de várias horas, tanto a ida, como a volta. Quando tinha 12 ou 13 anos, engravidou do pai. Aquele era um tempo cheio de superstições, o fruto resultante de uma relação incestuosa era considerada diabólica, ou coisa parecida, e a miúda foi escondida/isolada durante toda a gravidez. Não consta que o pai dela sofresse restrições ou censuras. O meu pai, que me contou esta história, também não faz ideia do que foi feito ao bebé. Só sabe que desapareceu.

2 - Uma mulher, à volta de quarenta anos, acabou por morrer devido aos maus tratos infligidos pelo marido e deixou seis filhos entre os dois e os dezasseis anos. O homem ficou impune e tornou a casar. A sua segunda mulher não quis os filhos do primeiro casamento, só ficou com a mais pequena, de dois ou três anos. Os outros foram simplesmente abandonados. Os padrinhos dos dois meninos levaram-nos para as suas casas. Das meninas ninguém quis saber. O pai das crianças ficou impune também por este crime, ninguém o denunciou às autoridades. A filha mais velha, de dezasseis anos, tinha um namorado, com quem ficou a viver, e levou consigo uma das irmãs. Mas eram muito pobres, não podiam ter mais ninguém a cargo deles. Outra irmã, de doze anos, foi trabalhar numa pensão, em Macedo de Cavaleiros. Acabou por casar aos quinze com um cliente dessa pensão. A mais nova, que ficou em casa do pai e da madrasta, era sujeita a muitos maus tratos por esta. Uma vez, deu-lhe tal tareia e deixou-a tão pisada (a menina tinha três anos!), que duas senhoras da aldeia, ricas e moradoras em Lisboa, tiveram pena dela e levaram-na consigo (foi assim que me contaram, não sei mais pormenores). Pelos vistos, não se deram com ela e acabaram por a entregar à Santa Casa. A miúda fugiu, em adolescente, e terá enveredado por uma vida de prostituição.

3 - Numa casa rica da aldeia, faziam-se serões de fado, a que assistiam várias famílias, também a do meu pai, criança, à altura. Cantavam e dançavam. Um dos cantores/tocadores de guitarra fugiu para Angola com uma das mulheres que costumavam participar nesses serões. Ela era casada e deixou duas filhas de seis e oito anos com o pai. Poucos dias depois de a mãe desaparecer, a mais velha surgiu morta. Estranhou-se muito este caso, pois não se conheciam doenças à miúda. Passados mais alguns dias, surgiu morta a mais nova. Desconfiou-se do pai. Mas ninguém o denunciou às autoridades, não foi aberto nenhum inquérito. As meninas foram enterradas e o pai continuou a sua vida. Tornou a casar e a formar família.

4 - Um homem de outra aldeia foi trabalhar para a do meu pai como sapateiro. Deixou a mulher e os filhos na sua aldeia de origem e engraçou com outra, na localidade de acolhimento. Começou a assediá-la, mas ela recusou-o sempre. Até que a paciência dele se esgotou. Um dia de manhã, foi a casa dela munido de um machado e começou a agredi-la. A vizinha deu conta e foi ajudar a amiga. Acabou por morrer com uma machadada. Entretanto, surgiu mais gente, o homem acabou por ser controlado e a mulher que ele tencionara matar sobreviveu, apesar dos muitos ferimentos infligidos. O assassino cumpriu pena, não havia como ignorar o seu ato. A mulher que ele matou deixou seis ou sete filhos, o mais novo tinha quatro anos.

Camilo Castelo Branco também nos fala da violência que, no seu tempo, imperava nas relações humanas. Da leitura de Amor de Perdição, não foi o caso amoroso que retive, mas sim, a violência extrema no seio das famílias e a forma vergonhosa como as filhas eram tratadas:

«- Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que te deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser impostas pela violência. Mas repara, minha querida filha, que a violência de um pai é sempre amor (p.33)».

«Não sofras com paciência», diz Simão numa das suas cartas a Teresa, «luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia, quando o poder paternal é uma afronta» (p. 67).

«Que a não desejava morta, mas, se Deus a levasse, morreria mais tranquilo, e com a sua honra sem mancha»  (p. 103).

 

Nota: a paginação diz respeito à versão ebook, disponível no Projecto Adamastor.

23 de maio de 2021

Pentecostes

«Afonso cumpriu o ritual dos cavaleiros da alta nobreza, guerreiros divinos ao serviço de Deus, purificando o corpo e a alma: jejuou um dia inteiro e passou a noite em vigília na igreja de São Salvador de Zamora, estando a catedral ainda a ser construída.

Meu filho armou-se a si próprio cavaleiro, tomando pela sua mão as armas que se encontravam sobre o altar, benzidas pelo bispo Bernardo de Périgord, realçando assim a sua condição de infante, filho de rainha, neto de imperador. Foi uma cerimónia parca de testemunhas, mas mui intensa para nós, imbuídos do espírito de Henrique, que parecia pairar sobre nossas cabeças como as línguas de fogo do Espírito Santo sobre as dos apóstolos».

 In Memórias de Dona Teresa (Poética Edições 2018) 

 


 

Nota: embora não se saiba a data da investidura de D. Afonso Henriques, muitos historiadores apontam para o Pentecostes (altura preferida, naquele tempo), dos anos 1125 ou 1126.

17 de maio de 2021

Eu também

«Quando tinha 12 anos fui assediada por um vizinho. Um homem com idade para ser meu avô dirigiu-me palavras obscenas, propostas porcas. Sem que me tivesse apercebido, a mulher desse homem também ouviu o seu assédio e confrontou-me dias depois, acusou-me de lhe provocar o marido, dirigiu-me palavras que uma mulher não deve ter para com uma menina. Dele tive medo, mas ela fez-me sentir culpada, suja. Uma mulher com idade para ser minha avó preferiu atacar-me, a mim, uma menina que nem era ainda uma mulher, que enfrentar a realidade de estar casada com um pedófilo, um predador».

«Tinha treze anos quando comecei a ser assediada e nada me preparou para o choque. Na escola todos os rapazes apalpavam as maminhas e os rabos e os genitais de todas as raparigas e levantavam-lhes a saia. Os professores e auxiliares que viam isto - e isto acontecia mais ou menos em todos os intervalos - nunca fizeram nada. Hoje em dia surpreende-me a rapidez com que todos, raparigas e rapazes, aceitámos que este assédio era “normal”».

«Quando comecei a sair regularmente à noite, acho que nunca me senti tão insistentemente tocada, agarrada, ignorada quando dizia que não, que não queria conversar, que não queria dançar, que não queria um copo, etc. Era como se os homens, muitos homens, achassem que tinham o direito de dispor do meu tempo, do meu corpo, de mim. E na mesma medida em que achavam que tinham esse direito, achavam que eu não tinha o direito de lhes dizer não».

«Na verdade, foi com a chegada das minhas filhas à adolescência que percebi a violência das situações por que passei. Reagi sempre com desprezo ou distância, soube defender-me, pelo que nunca me vi como uma vítima. Mas fui assediada várias vezes em contexto laboral. E não quero que as minhas filhas, ou qualquer mulher, ou qualquer homem, continuem a encarar essa situação como uma fatalidade».

«O café está vazio. Sou o único cliente. Atrás do balcão, um empregado, jovem, aproxima-se da colega que arruma as chávenas sobre a máquina do café e passa as costas da mão devagar pelo braço nu da empregada. Ela sobressalta-se, olha-o com medo e foge para o outro extremo do balcão sem dizer uma palavra. Ele vai atrás dela, a rir, divertido, com uma mão agarra-a pelo pulso e força a outra mão através das mãos da rapariga para lhe acariciar de novo o braço. A empregada treme de confusão, de medo e de raiva e sacode as mãos, impotente, com lágrimas nos olhos mas sem querer gritar para não fazer escândalo. Levanto-me da mesa e aproximo-me do balcão. O empregado sorri-me cúmplice, entre homens, sem largar a rapariga, pensando que eu quero apreciar mais de perto o espectáculo e continua a deslizar a mão pelo braço da rapariga. Quando lhe digo para parar, hesita, considera a hipótese de me confrontar e acaba por largar a colega murmurando qualquer coisa do género “Era uma brincadeira… Não estava a fazer nada…”».

«Entrei num café com um amigo de família, bastante mais velho. Senti que tinha uma pedra no sapato a magoar-me. Parei. Apoiei-me na porta. Sacudi o pé algumas vezes. Comecei a ouvir os risos dos muitos homens que estavam lá dentro, frases de uns para outros, senti o calor a subir-me à cara antes sequer de perceber porquê. Até que ouvi, voz gritada, para garantir que chegava a mim e a todos: «Esta aqui quando crescer vai dar uma bela égua. Quero ver é quem a consegue montar.» Gargalhadas. Eu tinha oito anos».

«Tinha doze anos, vinha das aulas. Eram cerca das 18h 15m, mas era Inverno e já estava escuro. Abri a porta do prédio onde morava, uma porta de madeira, sem qualquer vidro. Portas destas eram mais ou menos comuns, nos anos 1970. Entrei e, quando já estava quase a fechar a porta, alguém a travou, do lado de fora. Pensei ser alguém a querer entrar no prédio por boas razões, deixei a porta aberta e dirigi-me às escadas. De repente, fui agarrada pelas costas. Totalmente confusa, dei conta de que estava a ser toda apalpada. Quis gritar e não consegui, assim como não consegui libertar-me. Senti um medo de morte, estava a entrar em pânico, quando fui largada. Senti a pessoa a afastar-se e olhei instintivamente para trás. Vi um rapaz com o sexo erecto fora das calças. Quando me viu a olhar para ele, apontou para o sexo. Subi as escadas a tremer (não havia elevador) e com o coração aos saltos, apesar de ele ter desaparecido. Não contei a ninguém, tive vergonha. E muito medo de que me culpassem - porque não fechaste a porta? Porque não gritaste? Porque não lhe deste um murro? etc., etc. Mas como pode uma miúda de doze anos estar preparada para um ataque destes?».

«Tinha 11 anos. Um velho vizinho do prédio "amigo" do meu pai, ouvia-me a entrar no elevador e como morava no andar de baixo, entrava lá dentro. Apalpava-me, um dia voltei-me e apertou-me o pescoço e ameaçou fazer mal aos meus pais».

Estes são relatos partilhados num grupo do Facebook. Um dos relatos é meu. As mulheres sentem-se encorajadas ao constatar que outras o fazem, surgem cada vez mais a dizerem «eu também». Há igualmente relatos de homens que assistiram a cenas de assédio e se revoltaram (como mostra o exemplo) e são muito bem-vindos. Os ataques, assédios e abusos acontecem em qualquer idade, mas escolhi propositadamente meninas, na sua maioria, para que todos se dêem conta, quão cedo nos mostram que são livres de nos intimidarem e usarem o nosso corpo. E com que impunidade o fazem.

Todas as mulheres já foram molestadas e assediadas, independentemente da maneira como se vestem, ou como se maquilham (ou não maquilham). Muitos homens até preferem as discretas e tímidas por serem mais susceptíveis de não reagir. As que dizem que não se importam, por ser “normal”, apenas recalcam o mal-estar e contribuem para a impunidade dos agressores. A maior falácia, na educação das meninas, é dizerem-lhes que nada de mal lhes acontece, se não usarem roupas provocantes e não derem nas vistas. Não digam isso às vossas filhas e netas! É mentira!

Muitas vezes me dizem estar a cumprir «agenda de esquerda», com textos deste tipo. Mas esta não é uma luta de esquerda, é uma luta de todos os lados. Pela mudança de mentalidades.

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Uma parte muito relevante da sociedade, talvez a maior parte, ainda não consegue compreender o que se passa verdadeiramente quando uma mulher se sente assediada ou à beira de um assédio num contexto laboral. Essa circunstância desrespeita o mais profundo da sua dignidade, põe em causa direitos fundamentais básicos e inibe o seu pleno desenvolvimento como pessoa.

 

Não se trata de direitos das mulheres, não são coisas do “mulherio”.

Trata-se de Direitos Humanos!

15 de maio de 2021

O solidéu do papa

A 15 de maio de 1982, depois de ter visitado o Santuário de Nossa Senhora do Sameiro, em Braga, o papa João Paulo II viajou de helicóptero até ao Porto, onde presidiu a uma missa celebrada junto à Câmara Municipal, na Avenida dos Aliados.

Esta é a versão oficial. Na verdade, o helicóptero que transportava Sua Santidade não aterrou no Porto. Aterrou em Vila Nova de Gaia. Mais precisamente, no Quartel do Regimento de Artilharia Nº 5 do Exército Português, a cerca de duzentos metros do apartamento onde eu morava com os meus pais e o meu irmão.

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Imagem Open House Porto

É conhecida a imagem da igreja e do antigo mosteiro (hoje quartel) da Serra do Pilar, no alto do morro sobranceiro ao rio Douro, de onde se tem uma das melhores vistas sobre a ponte de D. Luís, a cidade velha do Porto e a Ribeira (porto medieval). À altura da visita de João Paulo II, o lanço do muro do Regimento de Artilharia Nº 5 que dá para a Rampa do Infante Santo estava ainda pintalgado de vários círculos vermelhos, assinalando as marcas das balas disparadas a mando do brigadeiro Pires Veloso, em Outubro de 1975, contra os SUV, que controlavam o RASP (abreviatura pela qual era conhecido o Quartel da Serra do Pilar, nessa altura). Durante horas, ouvimos, de nossa casa, as descargas de G3 e da restante artilharia pesada. Mas isto será assunto para outro postal.

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Entrada do Quartel da Serra do Pilar, na Rua Rodrigues de Freitas, © 2011 Horst Neumann

A 15 de maio de 1982, as euforias não eram revolucionárias. Depois de ter aterrado no Quartel da Serra do Pilar, João Paulo II transferiu-se para um descapotável. Desceu a Rua Rodrigues de Freitas e, chegado à Avenida da República, virou à direita, em direção à ponte D. Luís. Por trás das grades de segurança, milhares de pessoas ladeavam o lanço final da avenida que conduz à ponte. Eu fazia parte dessa turba, juntamente com duas amigas. Tínhamos entre dezasseis e dezassete anos.

João Paulo surgiu, finalmente, a acenar à multidão. Quando passou por nós, algo insólito aconteceu: o solidéu voou-lhe da cabeça e aterrou no meio da avenida. Fiquei especada a olhar para o adereço papal, nem sequer me estiquei para seguir o carro até ele desaparecer de vista. Passada a comitiva, lá jazia o solidéu, ninguém lhe parecia ligar. E atingiu-me uma grande vontade de o ir buscar, esgueirando-me por entre as grades. Mas hesitei, as forças policiais vigiavam a multidão que começava a dispersar.

Custava-me, porém, sair dali sem me apossar da relíquia (e mal sabia eu que João Paulo II seria canonizado vinte e três anos mais tarde). Informei as duas amigas das minhas intenções, em busca de solidariedade. Sempre era diferente irmos as três buscar o solidéu, do que uma sozinha. Mas elas alegaram que seríamos admoestadas pela polícia. Repliquei que nenhum dos polícias parecia reparar na peça caída no meio da rua, encontravam-se de costas para ela, concentrados na multidão. Mas as duas mantiveram-se firmes. Se alguém tentasse passar as barreiras de segurança, eles com certeza atuariam.

Fiquei numa hesitação entre o ir e não ir. E o receio, aliado à falta de apoio, acabou por vencer.

Não nego que tivesse sido a melhor decisão. Mas ainda hoje encaro a possibilidade de ter sido bem sucedida, pelo que estaria na posse de uma verdadeira relíquia.

Quem terá ficado com o precioso objecto? Terá sido devolvido ao papa?

Uma coisa é certa: até sairmos dali, o solidéu permaneceu caído no meio da avenida.

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Solidéu papal - imagem Wikipedia

11 de maio de 2021

O Padre Costa de Trancoso

 

O autor deste livro, o historiador Santos Costa, teve a amabilidade de mo oferecer e enviar para a Alemanha. Baseia-se numa lenda de Trancoso: o padre Francisco da Costa terá tido 299 filhos de 53 mulheres! Há um processo com estes dados e com sentença de 1487, arquivado na Torre do Tombo. Duvida-se, porém, da sua autenticidade, ou dos dados lá apresentados, pois será difícil um único homem ter tantos filhos de tantas mulheres, nas quais se incluem uma tia do sacerdote, cinco irmãs e a própria mãe.

De qualquer maneira, vale a pena ler. As lendas fazem parte do nosso património cultural. E o autor prova conhecimento da época e usa linguagem apropriada. Para quem se interessa pelos tempos medievais, um livro destes lê-se com prazer e é sempre fonte de inspiração. O meu sentido agradecimento e os meus parabéns a Santos Costa.

O padre em questão teve sentença pesada:

«Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de sessenta e dois anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou».

(Torre do Tombo, Armário 5, Maço 7)

No entanto, acabou por obter o perdão de D. João II «por ter contribuído para o povoamento da Beira Alta». Se bem que eu me pergunte quantos filhos terá realmente tido. E, desses, quantos terão sobrevivido à infância, numa época de grande taxa de mortalidade infantil?

Li algures que perdões destes aconteciam. Não esqueçamos que a sociedade era patriarcal, ou seja, as mulheres não eram muito tidas em conta e um crime sexual acabava por atribuir a culpa a elas. Sinceramente, custa-me a acreditar que todas estas relações se teriam dado por mútuo acordo (se não foram tantas como se diz, teriam sido muitas, há sempre um fundo de verdade nas lendas). Ou seja, o padre terá violado muitas dessas mulheres, incluindo a mãe e as irmãs. Terá, no mínimo, manipulado, para que elas se sujeitassem, no que vai dar à mesma coisa. Sabe-se, hoje, que muitos abusos sexuais perpetrados por elementos da Igreja estão intimamente ligados à manipulação espiritual. Os clérigos utilizam a sua superioridade religiosa e (suposta) moral em chantagens e ameaças, a fim de submeterem as suas vítimas. E um padre do século XV não teria o menor prurido em o fazer.

Dito isto, e o autor vai-me desculpar, mas, e não obstante a qualidade da escrita e o ambiente medieval, não me caiu bem a simpatia pelo sacerdote e as suas "fraquezas" (melhor seria dizer psicopatias). Aqui e ali surge alguma censura, mas muito ténue e condescendente, do tipo da usada com crianças que se lambuzaram com algum doce que não deveriam comer. Que se pensasse, no século XV, que ele, coitado, se deixou levar pelo demo, é algo que não se pode mudar e temos de aceitar. Mas, infelizmente, é um tipo de posição que ainda se aceita, hoje em dia. Tive ocasião de o verificar, fazendo uma pequena pesquisa sobre comentários ao livro.

Não posso igualmente deixar de referir palavras transcritas na contra-capa e que terão sido proferidas, ou escritas, por Aquilino Ribeiro:

«Não será Trancoso? (...) O nome é assim patusco. Olhe contaram-me que era de lá o nosso Nostradamus e um padre raro, único, um padre em que pelos vistos encarnou o génio da espécie».

Sem negar o grande talento literário de Aquilino Ribeiro, ele, pelos vistos, esqueceu-se de que também as mulheres faziam parte da sua espécie. E é notório que se estava a marimbar para os métodos de sedução do tal «génio»!

Salvaguardar património cultural português, sim! Mas o padre Costa de Trancoso devia ser um símbolo do abuso de poder de certos clérigos, a fim de cometerem crimes sexuais, em vez de ser apontado como um «génio» digno de admiração e inveja. Enquanto assim for, as feministas têm ainda muito trabalho pela frente.


30 de abril de 2021

O assassinato nunca prescreve ("Mord verjährt nie")

 

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No passado dia 17 de Abril, o canal alemão ZDF transmitiu um policial sobre a tentativa de resolução de um assassinato acontecido há trinta anos ("30 Jahre", no texto em baixo).

 

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Tratava-se de um telefilme, mas, na Alemanha, investigações deste tipo não são ficcionais. O assassinato nunca prescreve. Sobretudo, quando existem meios de identificar um assassino, mesmo passada uma eternidade sobre o crime (como a descodificação do ADN). Já em Portugal, não se investiga um assassinato que tenha ocorrido há quinze anos ou mais. Porque, se os crimes não prescrevem, a possibilidade de instauração ou continuação de um processo penal ou ainda, noutros casos, a execução da sanção aplicada, prescrevem.

 

Vem isto a propósito de mais um policial de Mario Lima, o pseudónimo de um escritor alemão que vive em Portugal e do qual já por duas vezes falei aqui. Neste seu terceiro livro, cujo título Die Mauern von Porto é um pouco difícil de traduzir (talvez “Emparedadas no Porto”), ele ocupa-se precisamente com a prescrição de um assassinato.

 

Die Mauern von Porto.jpeg

Um incêndio num prédio do Bairro da Sé, mais precisamente, na Rua da Bainharia, provoca estragos numa casa ao lado, vazia há várias décadas. Bombeiros e polícia penetram na casa, a fim de melhor avaliarem os estragos e, na mansarda, deparam com uma parede que, tudo indica, foi levantada à pressa e não tem qualquer passagem para o resto da divisão. Resolve-se mandar deitar a parede abaixo e surgem dois esqueletos, um deles ainda com restos de roupa.

 

A PJ é acionada e os exames de peritagem revelam tratar-se dos restos mortais de duas mulheres, mais precisamente, de uma adulta e de uma jovem de treze ou catorze anos. Porém, quando a equipa do inspector Fonseca se prepara para investigar o caso, a peritagem revela ainda que, apesar de os restos mortais indiciarem morte violenta, o crime terá acontecido há cerca de vinte anos. É um duro golpe, principalmente, para as duas investigadoras da equipa, que logo suspeitam que se trataria de mãe e filha e são firmes no pressuposto de que a culpa nunca prescreve.

 

Nunca me tinha ocupado do assunto e confesso que não sabia que um assassinato prescreve ao fim de quinze anos. O que são quinze anos? Nada! Neste livro, através de uma agente que é inserida na equipa do inspetor Fonseca depois de ter trabalhado no departamento de combate à corrupção, o autor aflora ainda a prescrição de crimes de corrupção, alguns já ao fim de dois anos, assim como o enriquecimento ilícito de pessoas à frente de uma Fundação. E não é esquecido o facto de estas leis favorecerem os poderosos e os ricos, que, além de terem influência, estão em condições de contratarem advogados capazes de protelarem a investigação, até que os crimes prescrevam. Como se vê, Mario Lima aborda um tema bem atual. Já por isso, se aconselha a tradução deste seu livro.

 

À equipa do inspetor Fonseca vai ser dada enfim a possibilidade de encontrar o culpado, pois um crime perpetrado há um tempo não tão longo assim despoleta acontecimentos fatais. O assassino fica nervoso com a descoberta dos esqueletos das suas vítimas. E há quem ainda não tenha digerido o desaparecimento de duas familiares, embora lhe tenha sido dada uma explicação plausível para a ausência delas. Porém, há sempre dúvidas que não se esclarecem, causando discussões, chantagens. E, numa hora de aperto, um assassino bem pode cometer novo crime...

 

Excelente policial de Mario Lima, que criou uma bela equipa de investigadores da PJ e que, como de costume, descreve na perfeição a atmosfera da cidade do Porto.

25 de abril de 2021

Uma bomba a iluminar a noite do Marão


 

A 2 de abril de 1976, o padre Maximino Barbosa de Sousa (conhecido por padre Max), de trinta e três anos, e a estudante Maria de Lurdes Correia, de dezanove, foram assassinados com uma bomba colocada no carro do sacerdote. Os dois regressavam a casa, depois de terem dado aulas noturnas, na Cumieira (Santa Marta de Penaguião).

Os principais suspeitos deste crime foram agentes do Movimento Democrático de Libertação de Portugal, um grupo terrorista de direita do tempo do PREC, mas, num julgamento de 1999 (!), não foram feitas condenações por falta de provas concretas.

O padre Max era candidato pela UDP às eleições de 25 de abril de 1976, o que incomodava muita gente em Vila Real e região adjacente, predominantemente de direita. Além de professor no liceu da capital de distrito, o padre Max dava aulas noturnas, gratuitas, em várias aldeias, ajudando muitos jovens sem posses a alargar as suas habilitações para lá do ensino primário. Também a estudante Maria de Lurdes Correia dava aulas e explicações, em regime de voluntariado.

O padre Max era popular entre a juventude da zona, entusiasmando muitos com as suas ideias políticas, o que não agradava aos poderosos, nem à maior parte dos habitantes de índole muito conservadora. O facto de ele se fazer acompanhar frequentemente por raparigas estudantes, que o ajudavam nos seus projetos de alfabetização, também era motivo de crítica e de suspeita. Logo a seguir ao atentado, se ouviram rumores de que ele teria uma relação com Maria de Lurdes Correia, estando ela inclusive grávida, e o assassino seria um namorado, ou ex, da jovem. Tentava-se assim empurrar o assassinato para o lote dos crimes passionais. Estes rumores levaram à exumação do corpo de Maria de Lurdes, provando-se que não só a gravidez era infundada, como a jovem era virgem!

Depois do julgamento de 1999, e (supostamente) não havendo provas, o processo foi arquivado. Daniela Costa pega nos factos para criar um enredo que tente explicar o que realmente se passou. Como diz o texto da contracapa: «a chuva, a bomba, a morte e a noite no Marão são factos. A narrativa é uma hipótese».

Este livro é um marco importante contra o esquecimento.


23 de abril de 2021

Afinal, quem fundou a Universidade?

  

A editora Clube do Autor publicou, há cerca de um mês, um romance histórico com o título “A Herança de D. Dinis”, de Maria Antonieta Costa. No texto promocional, pode ler-se:

O testamento de D. Dinis é a prova de que o monarca alcançou uma riqueza extraordinária. Como teria sido possível acumular tantos bens em apenas vinte e cinco anos, o tempo do seu reinado, entre 1299 e 1325?

A segunda frase é extremamente infeliz. Dela se depreende que o reinado de D. Dinis durou apenas vinte e cinco anos, iniciando-se em 1299. Sendo assim, gostaria de perguntar aos responsáveis por estas linhas (que, segundo a autora, fazem parte do texto da contra-capa), qual o monarca responsável por nada menos do que sessenta cartas de foral concedidas entre 1279 e 1298; quem presidiu às Cortes reunidas por quatro vezes, entre 1285 e 1291 (Lisboa 1285, Guimarães 1288, Lisboa 1289, Coimbra 1291); quem fundou a cidade de Vila Real em 1289; quem fundou o Mosteiro de Odivelas em Fevereiro de 1295; quem assinou o Tratado de Alcanices, a 12 de Setembro de 1297, no qual se definiram as fronteiras definitivas entre Portugal e Castela.

E afinal, quem fundou a Universidade, em 1290?

O reinado de D. Dinis durou quase quarenta e seis anos. Iniciou-se a 16 de Fevereiro de 1279, data da morte de seu pai D. Afonso III, e findou a 7 de Janeiro de 1325, com a sua própria morte. Seria demais pedir maior rigor, ao escrever sobre romances deste tipo?

 

Nota: gostaria de salientar que, antes da publicação de um livro, a editora mostra a contra-capa ao escritor, que pode solicitar alterações ao texto.

21 de abril de 2021

Memórias de Dona Teresa - excertos (1)

 

«Em pequena, poucos momentos de liberdade tive, desde cedo confinada ao recolhimento, à oração, aos bordados e outros lavores. Raramente ousava correr como um moço pelos montes do Bierzo, com a minha melhor companheira, uma cadela, da qual me contaram eu me ter afeiçoado com apenas três anos, sendo a bicha ainda cachorra. Dei-lhe o nome de Loba e asinha me ultrapassou em altura, pois era de raça pastora. Impunha respeito, mas foi sempre mui branda comigo, seguindo-me para todo o lado. Quiçá sentia que eu houvesse mister de amparo e, não tendo rebanho para cuidar, a mim se dedicou.

Torno a descer as pálpebras, a fim de volver a essa infância e me confortar no olhar da cadela, que me dava tudo o que buscava: compreensão, afeto, fidelidade. A Loba consolava-me nos dias mais amargurados e solitários, curava-me o corpo e a alma doridos das tareias e dos ralhos, que me quebravam a alegria de viver».

 


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