Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de junho de 2012

O regresso do Amável

"Os pais do Amável estavam mortos. Sobrava um casebre colado à igreja, e a memória que todos guardavam dele era a de um menino triste, franzino, doente, efeminado. Fora até com grande espanto que o haviam visto partir cheio de coragem para terras de África, em busca de felicidade e fortuna; e, ao longo dos anos, foram correndo rumores de que estava muito bem instalado em Luanda, com mulher e filhos, homem feito, senhor de grandes propriedades no Norte de Angola, mais de quinhentos pretos ao seu serviço. Mas, contra todas as expectativas, o Amável que regressou assemelhava-se em tudo ao Amável que partira. Vinte anos mais velho, é certo. Sem mulher, sem filhos, sem pretos. O mesmo andar cabisbaixo, o mesmo tom de voz de quem pede constantemente autorização ao mundo para falar, para existir.
Toda a aldeia se compadeceu com o seu infortúnio e meteu mãos à obra. Em cinco dias, num formidável esforço coletivo, o casebre colado à igreja parecia outro: telhado novo, canalizações, eletricidade, mobílias, comida. Mas o Amável não dava sinal de melhoras, pelo contrário, e já muita gente andava convencida de que tinha trazido uma doença má dentro dele. Doença que até podia ser contagiosa. Os olhos estavam esquisitos. A pele. O cheiro. Habituação ao clima, diziam uns. Malária, diziam outros. Desgostos, concordavam todos.
Os dias foram passando e, como não evidenciava melhoras, mais do que convencê-lo, obrigaram-no a ir ao consultório do doutor Augusto Mendes que, após breve auscultação, perguntou: «Ó Amável, há quanto tempo é que tu não cagas?» E o outro, corado de vergonha, lá respondeu: «Há mais ou menos um mês, senhor doutor.»
O doutor Augusto Mendes mandou-o baixar as calças e colocar-se de gatas, e aviou-lhe um valente clister.
Ora, quando a barriga do pobre Amável começou a dar sinais de vida, o desgraçado, em vez de se aliviar logo ali, saiu disparado do consultório e desatou a correr estrada abaixo, a caminho de casa. Mas, no momento em que ia a passar, de calças na mão, à frente da taberna da Henriqueta, um jorro de merda saiu-lhe pelo rabo.
O Amável endoideceu, não tiveram dúvidas. E o espanto ainda foi maior assim que o viram a revolver o monte de merda com as próprias mãos, como se andasse à procura de qualquer coisa. E tanto procurou que encontrou: um saquinho de plástico que, presumiram todos, estaria cheio de pequenos diamantes. Estivesse ou não, fossem diamantes ou outra coisa qualquer, o Amável deixou as calças, as cuecas, a camisa, o monte de merda, no meio da estrada, e nunca mais ninguém o viu."

O Teu Rosto Será o Último, João Ricardo Pedro (Prémio Leya 2011)

27 de junho de 2012

Abandono: um crime que continua impune!


Nesta iniciativa, o dia de luto pelo abandono de animais é estabelecido a 18 de Setembro, mas eu resolvi falar sobre ele agora, pois inicia-se a época de férias e os casos de abandono atingem níveis inenarráveis. E aproveito para falar de algo que me faz muita confusão. Não me admira que gente que trata mal os animais seja capaz de os abandonar. Mas nem todos os abandonados apresentam sinais de maus tratos, alguns, até provam terem sido estimados. E eu pergunto: como é possível que alguém que tratou bem de um animal e que conviveu com ele diariamente, consegue abandoná-lo? Acho incrível não se ter estabelecido uma relação afetuosa, por parte do humano! Consegue-se tratar de um ser vivo meses a fio, às vezes, anos, sem se aprender a amá-lo?

O mais chocante, no meio disto tudo é que, por parte do animal, se cria afeto. Não sei se os animais nos amam, mas criam, seguramente, afeição por nós. Eles não estão connosco apenas pelos privilégios que lhes proporcionamos. Um cão, cujo dono empobrece e deixa de ter dinheiro para comida, passa fome com ele. E se o dono se tornar num sem-abrigo, o cão dorme debaixo da ponte com ele. E se o dono adoecer, o cão fica junto dele. E se o dono morrer, o cão fica triste, sente a sua falta, talvez a sua mágoa seja tão grande, que nem se deixe seduzir por outra pessoa que lhe faça festas e lhe ofereça comida.

Dizer que os animais não têm sentimentos e que só estão connosco pelos confortos que lhes proporcionamos, serve apenas para uma coisa: aplacar a consciência humana, de maneira a lidar melhor com o sofrimento que lhes causamos; de maneira a lidar melhor com a maneira incrível com que os humanos se servem dos outros animais.

EU SOFRO!

Lembre-se de que ele sofre, quando o abandona! Lembre-se de que ele sente a sua falta! Lembre-se que, para ele, não há mais nada no mundo que o possa substituir! E, no caso de ter abandonado um animal, se se arrepender e tornar a albergá-lo, ele não o censura por aquilo que lhe fez. Torna a recebê-lo com uma alegria esfuziante e aquele brilhozinho nos olhos, como quem diz: «que bom ter-te tornado a encontrar!»

25 de junho de 2012

Incentivar as crianças a ler

Eduardo Sá diz-nos que não se educa com bons conselhos, mas com bons exemplos. Lembrei-me dessa premissa, ao deparar com este post da Paula: depois da minha filha mais nova (8 anos) saber que eu estava a participar no Clube de Leitura Bertrand, achou que também ela deveria ter um Clube do Livro. É bonito ver como ela e as outras crianças se entusiasmaram, mas, mais bonito, é ver o empenho e o interesse da Paula pela iniciativa da filha.

E volto às palavras de Eduardo Sá: não adianta dizer aos filhos que devem ler, quando os pais não têm hábitos de leitura; assim como não adianta dizer-lhes que não comam tantos doces e batatas fritas, quando os pais se afogam em fast-food; ou como não adianta dizer-lhes que é feio mentir, quando eles assistem, quase diariamente, como os pais mentem às pessoas com quem falam.

Os bons exemplos e, acima de tudo, o interesse que os pais mostram pelas coisas dos filhos, fazem crianças felizes. E crianças felizes têm mais probabilidades de se tornarem em adultos felizes.

Já agora, e regressando à temática de incentivar a leitura nas crianças, lembro o post que publiquei, há tempos, sobre "publicar" o livro do seu filho. Também lá está tudo: o bom exemplo e o empenho dos pais.


22 de junho de 2012

Minha Querida Inês


Foi o primeiro livro que li de Margarida Rebelo Pinto e peguei nele cheia de preconceitos, tanto se tem criticado a autora e a sua literatura light. Bem, convenhamos que o título faz prever o pior e só me resolvi a ler por se tratar de um romance histórico sobre os últimos dias de Inês de Castro

A autora possui, na verdade, uma tendência para clichés e repetições desnecessárias. Lidas as primeiras páginas, estive para desistir. O romance parecia sustentar o mito de uma Inês sofredora e sem defeitos, vítima de um rei de maus fígados. Confesso, porém, que a minha insistência foi recompensada, acabei por me surpreender pela positiva.

Com a sua escrita emotiva, Margarida Rebelo Pinto consegue momentos muito fortes e introduz elementos interessantes, ao, por exemplo, apresentar-nos os acontecimentos sob outras perspetivas, que não a de Inês de Castro. Além disso, D. Pedro está longe de ser um homem cego pela paixão. É, antes, um bissexual promíscuo, que insiste naquele amor com o único fito de contrariar o seu pai, passando por cima dos sentimentos de Inês.

Só é pena que a relação, digamos, atípica, entre D. Pedro e D. Afonso IV (pai e filho), não seja mais aprofundada, pois, na minha opinião, é esse o motivo principal da tragédia. Já vai sendo tempo de nos livrarmos dos mitos camonianos (sem pôr em causa a excelência do poeta). Considero o momento alto deste romance a exposição das razões do próprio D. Afonso IV para exercer um ato tão bárbaro, ditas por ele próprio, a Inês, no dia da execução.

Esta será uma boa leitura para quem esteja aberto a diferentes interpretações da História, disposto a passar por cima de alguns choradinhos (como referir o “meu pequeno e frágil coração”, ou a irritante insistência em apelidar os filhos de “os meus anjinhos”) e de frases francamente enjoativas, como: “E quão extenso é um abismo entre os machos viris e as frágeis fêmeas! É o poder e a sede da guerra que os domina, enquanto nós apenas queremos amar e ser amadas."

21 de junho de 2012

Naquele Tempo (4)


"Para todos, porém, mesmo para Fernão Lopes, embora ele não o diga, era indispensável dotar a cidade dos símbolos da sua nobreza, da sua riqueza e da sua segurança. Eram, nesta época, os símbolos monumentais concretos, visíveis e bem elevados acima do casario: as grandes igrejas ou catedrais que atraíam a protecção divina, os palácios onde moravam os detentores do poder, as altas torres que se podiam ver de muito longe e das quais se controlava um largo território, e finalmente as muralhas que não serviam só para proteger dos inimigos, mas também para separar o espaço onde reinava uma certa liberdade individual daquele onde a maioria estava sujeita ao trabalho da terra e a tributação.
Portanto, para todos, a cidade, sede do poder, da riqueza, da ordem, da racionalidade. Pólo organizador do espaço e da sociedade. Centro do mundo. Íman de bens, de homens e de saber. Lugar do encontro entre Deus e todos os homens. Prefiguração da Jerusalém celeste".

(Página 191, A cidade medieval na perspectiva da história das mentalidades)

19 de junho de 2012

Equilibrar

Chegados a casa, é altura de equilibrar o corpo e o espírito. Isto de andar 2 300 km em três dias, com uma cadela a tira-colo, tem que se lhe diga. Além do cansaço que se adivinha, há sempre imprevistos. Já não falo das horas perdidas em engarrafamentos em Paris, ou perto de Liège. Depois do segundo dia de viagem, pernoitámos, de domingo para segunda, em Cambrai, no norte de França, já quase na fronteira belga. O hotel ficava perto de zonas arborizadas, com relva, o ideal para quem precise de dar as voltas obrigatórias com o seu animal.

Vimos o Portugal/Holanda e os comentadores franceses fartaram-se de elogiar a nossa seleção. Estava cansada demais para grandes festanças, mas senti-me bem e adormeci como um bebé, com a Lucy a meu lado, por cima da coberta. Em casa, ela sabe que não pode saltar para cima da cama, aprendeu de pequena. Mas, quando dorme em sítios desconhecidos, fica mais receosa e, para dizer a verdade, eu até gosto de a ter ali à mão, pois ela atua como um calmante. Já se provou, aliás, que afagar um animal faz baixar a tensão arterial.

Adormeci, portanto, de pazes feitas com o Cristiano Ronaldo, com a mão por cima da minha cadelinha, a sonhar com o chegar a casa, depois de três semanas em trânsito. Mas, nisto, acordei com o barulho de uma valente trovoada. Chovia a cântaros e a Lucy tremia, pois tem medo de trovões fortes. Eu não fazia ideia que horas eram e tentava acalmá-la, quando soou o despertador do telemóvel, marcado para as seis menos um quarto. A trovoada não passou e, cerca de vinte minutos mais tarde, eu encontrava-me no meio da borrasca, com uma cadela cheia de medo pela trela, a tentar que ela fizesse as suas necessidades. Tinha tomado banho antes de me deitar, mas o São Pedro achou que eu devia tomar mais um duche. A céu aberto.

Quando me sentei à mesa do pequeno-almoço, pelas sete menos um quarto, molhada até aos ossos, já me sentia esgotada. E tinha ainda 700 km pela frente!

Amar um animal tem destas coisas. E, apesar de tudo, agradeço à Lucy, por me ensinar a ser paciente e me lembrar que todos os seres vivos merecem ser amados pelo simples facto de existirem.




18 de junho de 2012

A viagem mais difícil

Transporto-me por segundos aos lugares que descreves, maravilho-me contigo. A espaços, porém, a atenção descola. Pergunto-me porque razão falarás tanto de aventuras, viagens, cinema, música, mas do que no íntimo pensas e sentes nada contas.

16 de junho de 2012

Querem ser amados...


Fazem promessas que sabem não poder cumprir. Alimentam, nos outros, expetativas, que, de antemão, prevêem sair goradas. Criam, assim, esperanças em vão. Fazem com que os outros se sintam amados, sem o serem.

O seu objetivo nunca é fazer algo pelo próximo, mas por si próprios. Querem ser amados, admirados, elogiados e acreditam consegui-lo sensibilizando os outros com a sua pseudo-bondade. Não se perguntam se os desiludem, se os ferem. É-lhes indiferente.

14 de junho de 2012

Pré-Publicação #10


Ninguém a importunava, nas suas deambulações pela serra, não via vivalma. Mas algo a começou a mortificar mais do que tudo: o ócio. Nada tinha para fazer, só os pensamentos a atormentá-la. Às vezes, tinha a sensação de estar a viver algo de irreal. E começou a assustá-la uma incapacidade, em certos momentos, para distinguir o sonho da realidade. Concentrava todo o seu sentido e todas as esperanças no sábado, quando veria o seu amante, que seria, sobretudo, uma pessoa com quem falar, lembrando-lhe que ainda era gente.


12 de junho de 2012

Crónica d'Orelhudos



Adorei ler este livro, que está à disposição de todos, como ebook. A Crónica d'Orelhudos é uma sábia alegoria aos regimes que, apesar de se intitularem de democráticos, impõem leis e burocracias que não têm outro objetivo que não seja a sua própria existência e a proteção dos que mexem os cordelinhos. As eleições são livres, mas é claro que os candidatos pertencem à elite que é suposto governar; há liberdade e iniciativa privada, mas é claro que o cidadão comum se vê tão enredado em burocracia, que corre o perigo de endoidecer, mergulhar na depressão, ou tornar-se num criminoso sem sequer se aperceber; e é claro que a burocracia e o circular do dinheiro só servem para alimentar essa mesma burocracia e enriquecer a elite. Quem pertence ao povo, só se safa caindo nas boas graças daqueles que o governam. Daí à corrupção e ao tráfico de influências é um passo, minúsculo.

Mas o autor, Luís Novais, deixa uma nesga de esperança, ao lembrar-nos de que, muitas vezes, para acabar com o círculo vicioso, é apenas necessário dizer "não", apontando, sem medo, os defeitos e as fraquezas de um regime, colocando o dedo na ferida.

Recomendo vivamente esta leitura  (clique, para mais pormenores).

10 de junho de 2012

Uma cadela de férias pela Europa






No metro de superfície, em Estrasburgo.











Esplendor na relva.











Isto de fazer turismo é cansativo!






O que vale säo estas camas de hotel. A dona, já se sabe, lá aproveita para uma olhadela naquele aparelhómetro. Estou habituada ao ruído das teclas, até me ajuda a fazer a sesta.





Um passeio pela cidade velha de Périgueux.
Era dia de mercado, havia muito que farejar.










Chegada a Portugal e o aconchego de um lar!

9 de junho de 2012

O Desastre de Badajoz - III

A fim de permitir a fuga de D. Afonso Henriques por uma porta mais pequena e menos vigiada, inventei uma manobra de diversão, a fim de iludir o inimigo: um ataque à alcáçova, onde ainda se encontravam os mouros refugiados.


Afonso esperou algum tempo perto da alcáçova, observando o ataque, a fim de convencer o inimigo de que dirigia as operações. Quando lhe foi dito que a porta do rio se tinha aberto, sem que ninguém desse conta, fez-se ao caminho, cavalgando cerro abaixo, dobrando curvas e esquinas, em ruelas tão estreitas, que o cavalo mal lá cabia. Seguiam-no os seus dois filhos, D. Gualdim Pais, Soeiro Viegas e mais quatro cavaleiros. O alferes-mor Pêro Pais oferecera-se para ficar nas imediações da alcáçova, a fim de que os mouros e os leoneses não dessem cedo demais pelo truque.
Se os que seguiam Afonso tinham duvidado, no serão anterior, de que ele ainda possuísse destreza e força, depressa mudaram de opinião. O rei cavalgava tão rápido, que eles não conseguiam acompanhá-lo de perto. Dir-se-ia que uma força diabólica o guiava. O seu peso de consciência?
No momento fulcral, pareceu turvar-lhe a coerência. Ao chegar à última curva antes da porta, Afonso, de tão ansioso de a atravessar, não freou convenientemente a montada. O animal fez a curva, mas empinou-se em frente à pequena porta, encimada pelo habitual arco em forma de ferradura. O rei dominou-o, forçando-o a passar pela abertura. Mas o cavalo tinha-se desequilibrado um pouco e fez com que a perna direita do rei raspasse na parede, ao lado da porta. E o joelho de Afonso acabou por chocar com enorme violência contra o ferrolho de ferro.
Afonso passou para o lado de fora das muralhas a dar um berro, provocado pela dor lancinante, e puxando involuntariamente as rédeas da montada. O animal tornou a empinar-se e, desta vez, sem acção na perna direita, o soberano não se conseguiu segurar e caiu ao chão. Também o cavalo perdeu o equilíbrio, sobre as rochas íngremes. E caiu sobre Afonso.
O facto de os outros cavalgarem algumas jardas mais atrás, acabou por se tornar vantajoso, pois conseguiram parar, antes de serem envolvidos no acidente. Desmontaram e foram direitos ao monarca, que se mantinha estatelado no chão, enquanto o cavalo logo se levantara. Soeiro Viegas, Fernando e Pedro ajoelharam-se ao pé do rei, tiraram-lhe o elmo e puxaram-lhe o almofre e a coifa para trás. Afonso jazia sem sentidos. A sua cabeleira branca colava-se, junto com o suor e o pó, à face pálida.
- Meu Deus - lançou Pedro. - Estará morto?

Daqui

D. Afonso Henriques não estava morto, mas ficou incapacitado de andar e montar para o resto da sua vida. Além disso, viu-se sujeito aos favores do genro, que foi magnânimo e não se apoderou do reino português, contentando-se com o recuperar de territórios galegos em posse do monarca luso e da promessa deste de respeitar a fronteira do Guadiana.

Tudo isto terá sido uma humilhação difícil de digerir para D. Afonso Henriques. Porém, não posso deixar de o admirar, pelo menos, no que diz respeito à sua incapacidade física. Um homem com a sua energia e a sua força de vontade, que se viu impedido de se deslocar pelos seus próprios meios, reagiu e manteve a dignidade, até à morte, cerca de quinze anos mais tarde. Ninguém contestou o seu poder, todos continuaram a obedecer-lhe e a venerá-lo. E, segundo as pesquisas históricas mais recentes, D. Afonso Henriques terá ainda conseguido evitar uma guerra civil, quando o seu filho ilegítimo, mais velho que o infante D. Sancho, aspirou ao trono português.

7 de junho de 2012

O Desastre de Badajoz - II

 
O escudeiro do rei preparava-se para lhe enfiar o elmo por cima do almofre, mas Afonso empurrou-o para o lado, bradando ao amigo:
- Não vedes que Badajoz se nos transforma numa armadilha gigantesca? Ficaremos entalados entre os leoneses e os mouros. Através da porta que liga a alcáçova ao exterior, os infiéis poderão munir-se de mantimentos.
Depois de uma hesitação, Soeiro Viegas replicou:
- Foram cometidos vários erros. Mas o maior de todos foi subestimar el-rei de Leão!
Afonso encarou-o furioso. Veio-lhe à ideia a última conversa com a filha Teresa. Agora, Soeiro Viegas dava razão à infanta! Como se atreviam eles a acusá-lo? Estaria a ficar velho, incapaz?
Num misto de fúria, desespero e arrependimento, agarrou as vestes do fidalgo e bradou-lhe:
- Dizei-o, de uma vez, com mil diabos! Nunca deveria ter acedido ao pedido de ajuda de Geraldo Sem Pavor! Não vos quis dar ouvidos e cai na ratoeira! Vamos, tendes coragem de o dizer?
Afastou-o de si, com um safanão. Soeiro Viegas permaneceu impassível. E Afonso acabou por murmurar:
- Entrarmos em conflito uns com os outros seria o próximo erro. É tempo de acabar com eles.

Muralhas de Badajoz

Os portugueses viram-se tão aflitos em Badajoz, sitiados por leoneses e mouros, que se acabou por se decidir a fuga de D. Afonso Henriques por uma porta pequena e menos vigiada. Confesso que tenho problemas com esta decisão: D. Afonso Henriques a escapulir-se, deixando os seus guerreiros à mercê do inimigo? Não combina com o seu caráter. Mas haveria uma razão de peso: seria a única hipótese de manter a independência de Portugal, já que o nosso primeiro rei estava nas mãos do rei de Leão.
É impossível saber o que se passou entre D. Afonso Henriques e os seus barões, nessa noite de todas as decisões. Eu tentei imaginar:

 
Nesse serão, Afonso reuniu-se com os seus barões e logo avisou:
- Não admito mais discussões sobre o que deveria ter sido feito, ou evitado. Em vez disso, concentremos as nossas forças, à procura de uma solução, que nos tire deste buraco em que nos enfiamos.
Depois de um momento de silêncio, seu filho Pedro Afonso sugeriu:
- Rendamo-nos!
O irmão dirigiu-se-lhe furioso:
- Não deves estar bom da cabeça! El-rei de Portugal não se pode render ao de Leão. Seria o fim do nosso reino.
O mais novo insistiu, dirigido ao pai:
- Ele é vosso genro. Porque não tentais negociar com ele?
- Estou numa posição deveras desvantajosa para negociar com D. Fernando - replicou o rei. - Ele bem poderia aproveitar esta oportunidade para se apossar do nosso reino. E eu prefiro morrer, a cair-lhe nas mãos!
(...)
Afonso começou a conformar-se com a ideia (da fuga). O reino era a obra da sua vida, uma obra que ele construía há mais de quarenta anos, desde aquele dia de São João Baptista, em que montara o seu cavalo, a fim de o guiar para a sua primeira batalha, no campo de São Mamede. E esta obra, que tanto trabalho, sacrifício e persistência lhe custara, corria o perigo de se esfumar. Porque Afonso estava convencido de que el-rei de Leão se apossaria de Portugal, caso ele se lhe rendesse. E ele não queria continuar a viver, se isso significasse assistir ao desmoronar da sua obra.
Afonso pôs-se pálido, o que lhe realçava os olhos raiados de sangue. O cabelo, usado agora mais curto, estava quase todo branco e começava a rarear-lhe no alto da cabeça. Ao vê-lo assim, afundado na sua cadeira, os outros olhavam-no como se, pela primeira vez, se apercebessem de que o seu soberano, o grande Afonso Henriques, aquela lenda viva, a quem tantos atribuíam forças sobrenaturais, estava a ficar velho.

Daqui

5 de junho de 2012

O Desastre de Badajoz - I

Sandra Serra

Em Maio de 1169, com cerca de 60 anos, D. Afonso Henriques terá cometido o maior erro da sua vida: foi em auxílio de Geraldo Sem Pavor, que conseguira entrar na cidade de Badajoz, mas que falhara a ocupação da alcáçova, onde se refugiara o rei mouro com os seus guerreiros. Seria grande a vontade do nosso primeiro rei em conquistar esta cidade, pois para lá se dirigiu, embora tivesse acordado com D. Fernando II de Leão, em Celanova, que a margem esquerda do Guadiana pertencia à zona de influência leonesa.


           Havia três dias que Afonso e o exército português tinham ocupado Badajoz, mas o rei mouro persistia, barricado na alcáçova. Dificilmente morreria à sede, pois as fortalezas mouras eram conhecidas pelas suas fontes. Os víveres, porém, já deveriam ser escassos.
As muralhas de Badajoz, com os seus merlões de remate piramidal, assentavam em rochas, sobre um cerro sobranceiro ao Guadiana, e estavam reforçadas pelos habituais torreões quadrados. Além disso, gozavam, tanto a norte, como a oeste, da protecção do rio. Afonso admirava, por isso, a habilidade de Geraldo Sem Pavor e do seu bando, em terem conseguido penetrar na cidade. O guerreiro vilão havia expulsado os habitantes mouros e judeus e os seus homens ocuparam as melhores casas, algumas delas, já vazias, à altura da invasão, pois os habitantes mais ricos e influentes tinham-se refugiado na alcáçova. Os moçárabes haviam sido autorizados a ficar e viviam agora lado a lado com os soldados portugueses.
Senhor de Badajoz, o exército de Afonso não montara acampamento. E, como o calor de fins de Maio quase não se aguentava, os guerreiros adoptaram o ritmo do bando do Sem Pavor: orgias pela noite fora, em que bebiam e se divertiam com as rameiras, que ninguém se lembrava de expulsar, independentemente da sua religião. Dormiam, assim, toda a manhã.

Badajoz
A indisciplina e a desorganização no exército português são uma das razões apontadas pelos historiadores para explicar o fracasso de Badajoz. Eu reforcei este aspeto com uma rivalidade entre D. Fernando Afonso, filho ilegítimo do rei português, e D. Pêro Pais da Maia, alferes-mor do reino, o que acabava por dividir o exército em duas fações. Na verdade, os dois eram meio-irmãos, ambos filhos de D. Châmoa Gomes, o que penso que poderia ter originado um rancor entre eles. D. Fernando Afonso almejaria ser alferes-mor (como acabou por ser) e D. Pêro Pais da Maia nunca teria digerido bem o facto de D. Afonso Henriques não ter casado com sua mãe. São invenções minhas, a fim de enriquecer o enredo, mas é curioso verificar que, depois da aventura de Badajoz, D. Pêro Pais da Maia se incompatibilizou com o nosso primeiro rei, refugiando-se na corte leonesa.


Na sua quarta noite em Badajoz, Afonso foi arrancado da cama, pois as rixas tinham tomado dimensões incontroláveis. Acompanhado da sua guarda, o rei cavalgou pelas ruas da cidade, vendo com os seus próprios olhos como centenas dos seus soldados, incendiados pela euforia do álcool e misturados com saltimbancos e outras figuras mais sinistras, se batiam uns com os outros. Algumas bulhas acabavam em sangue, pois havia sempre quem fosse lesto a puxar da sua adaga, ou do seu punhal.

D. Fernando II de Leão, que assinara um pacto de defesa mútua com o califa de Sevilha, e apesar de ser genro de D. Afonso Henriques, acabou por surgir com o seu exército, em auxílio do rei mouro de Badajoz. As tropas leonesas sitiaram a cidade, encurralando os portugueses e libertando os mouros, comunicando diretamente com a alcáçova.


É difícil encontrar uma resposta para o erro estratégico cometido por D. Afonso Henriques. Talvez não acreditasse que o genro viesse ajudar os mouros. Ou talvez pensasse que os mouros, encurralados na alcáçova, se rendessem rapidamente. Na verdade, os portugueses já tomavam conta de Badajoz há três ou quatro dias, quando os leoneses surgiram. Teria D. Fernando II, de facto, hesitado em agir contra o sogro?

3 de junho de 2012

Ao Domingo com...

Hoje estou n' O Tempo Entre Os Meus Livros, o blogue da Cris, na rubrica Ao Domingo com...

Entrevista (9)

Excerto da entrevista dada à Joana Dias do Páginas com Memória:

Sente-se na sua obra uma vontade de mostrar o lado mais humano de cada personagem, isto é propositado? Qual a sua real intenção?

Trata-se do meu principal objectivo. Pela sua obra e pela distância no tempo, essas personagens históricas tornaram-se mitos, seres especiais, mesmo divinos. Mas eram humanos, como todos nós. Eu também não sei como eram, apenas chamo a atenção para esse facto, ao dotá-los de conflitos interiores e emoções.

Mudando um pouco de tema, qual dos seus livros lhe deu mais prazer escrever?

Bem, como já disse antes, a minha época preferida é o século XII. Por um lado, por ter marcado o início da nacionalidade. Por outro, porque me parece “mais medieval”. Embora o século XIII ainda pertença a esse período, D. Dinis nasceu já na segunda metade e já há uma certa transformação, o embrião daquilo que desembocará no Renascimento. Acho os séculos anteriores mais românticos, costumo dizer que gosto mais de cotas de malha do que de armaduras. As cotas de malha têm um toque sensual, adaptam-se ao corpo de quem as usa, apesar de serem de ferro e pesadíssimas. Mas são como renda, um rendilhado de ferro. Acho as armaduras, tipo carapaça, simplesmente horríveis. Por isso, gostei realmente mais de escrever sobre D. Afonso Henriques do que sobre D. Dinis, que foi, aliás, uma sugestão da editora. Embora eu ache que evoluí na linguagem, o que me faz pensar que o último romance (D. Dinis) está mais bem escrito.
Depois, há o aspecto de escrever sobre uma personagem histórica e uma fictícia. Livros como A Cruz de Esmeraldas, ou o que iniciei agora, dão mais liberdade, o enredo tem mais hipóteses de se desenvolver por si próprio. Escrevendo sobre um rei, tenho de me sujeitar a um percurso de vida “programado”, o que nem sempre é fácil, pois vejo-me na situação de arranjar uma lógica para atitudes que, às vezes, se me afiguram difíceis de explicar.


Ler a entrevista completa aqui e aqui.

1 de junho de 2012

Sherlock

Falava eu aqui na série Sherlock, da BBC, dizendo que ainda só tinha visto o primeiro bloco de três episódios. Mal sabia eu que o segundo estava prestes a ser transmitido pelo canal alemão ARD. Depois de ver o primeiro episódio deste bloco, A Scandal in Belgravia, confesso que me desiludiu um pouco a mesma tendência do filme de Guy Ritchie de sacrificar alguma coerência do enredo em favor do espetáculo.


De qualquer maneira, a ideia de transportar Sherlock Holmes para o século XXI é cheia de charme e está muito bem conseguida. As novas tecnologias desempenham um papel importante. Os sucessos do detetive, por exemplo, vão sendo conhecidos através do blogue do Dr. Watson. A comunicação na internet e por SMS é a base deste Scandal in Belgravia, que anda à volta de um smartphone, que conterá informações explosivas sobre terrorismo e Serviços Secretos. O smartphone está na posse de uma mulher que pretende provar que é mais inteligente do que o próprio Sherlock Holmes e, entre os dois, estabelece-se uma relação competitiva, carregada de erotismo. O Dr. Watson até se pergunta se Sherlock estará apaixonado. Ou a atração que sente pela mulher advém do desafio que ela lhe propõe? A verdadeira essência do detetive permanece um mistério, ninguém sabe (nem o seu amigo médico) se ele é hetero- ou homossexual, nem mesmo se o sexo representa algum papel na sua vida.

Mais do que o caso à volta do smartphoneA Scandal in Belgravia vale pelo enigma que representa a personalidade de Sherlock Holmes e pelos diálogos cheios de ironia e segundas intenções, como neste exemplo, em que o Dr. Watson se vê perante Irene Adler, a mulher em questão:

Irene Adler: O senhor veio sozinho. Consegui separar o par.
Dr. Watson: Nós não somos um par.
Irene Adler: Não?!
(O Dr. Watson precisa de refletir um pouco - surpreso? Ou com medo do que vai dizer a seguir?)
Dr. Watson: Eu não sou homossexual.

Deixo-vos com o respetivo trailer: